O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), apresentou o Projeto de Lei (PL) 4.740/2024, que propõe restringir o reconhecimento da cidadania brasileira a indígenas. O parlamentar alega que grupos Guarani que reivindicam a demarcação de terras no oeste do Paraná e no Mato Grosso do Sul seriam, na verdade, paraguaios. Segundo ele, o governo federal, com aval da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), teria concedido indevidamente a nacionalidade a essas comunidades para legitimar suas demandas territoriais.
A proposta se insere em um contexto mais amplo de contestação à demarcação de terras indígenas por setores do agronegócio. O relatório “Guaíra & Terra Roxa: relatório sobre as violações de direitos humanos contra os Avá-Guarani do Oeste do Paraná”, elaborado pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), aponta que a tese de que os Guarani seriam estrangeiros ou “falsos indígenas” tem sido usada como estratégia para deslegitimar seus direitos territoriais.
Para Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), essa estratégia não é nova. “O projeto é uma versão contemporânea de algo que já aconteceu no passado. É uma tentativa de desqualificar a nacionalidade indígena para usurpar terras. Essa é uma forma desumana de negar direitos às populações originárias”, afirma.
Santilli destaca que a proposta contraria a tradição brasileira de acolhimento e de reconhecimento da nacionalidade quando cabível. “É ainda mais contraditório que o autor do PL seja descendente de imigrantes, cuja família, em um passado recente, recebeu apoio do governo para se estabelecer no Brasil. Agora, ele quer negar o direito à nacionalidade a povos que já estavam aqui antes da criação do próprio Estado brasileiro”, diz.
Preconceito e impactos psicológicos

Ilson Okaju, liderança da aldeia Ivy Okaju, localizada em Guaíra, no oeste do Paraná, afirma que o discurso propagado pelo PL reforça o preconceito já existente na região. “Muitos indígenas enfrentam dificuldades por causa da discriminação. Como vivemos em uma área de fronteira com o Paraguai, há quem diga que nossa cidadania é uma falsidade ideológica. Ouvimos isso nas rádios, nas ruas, e isso gera medo. Há quem ache que somos paraguaios em situação irregular e que estamos ligados ao crime organizado. Essa narrativa racista tem se espalhado e nos afeta profundamente”, relata.
Além das dificuldades burocráticas, ele menciona os impactos psicológicos. “Esse preconceito e essa insegurança já viraram um trauma para a comunidade. Quando fechamos os olhos para dormir, voltamos a ouvir tiros e gritos. Isso acontece com muita frequência”, afirma.
A CGY acrescenta que o PL ignora o histórico de violências e expulsões sofridas pelos Guarani e que essa narrativa tem sido usada para barrar processos de demarcação de terras no Paraná e no Mato Grosso do Sul.
Direitos constitucionais ameaçados

Amauê Jachinto, presidente da Associação de Mulheres Indígenas Organizadas em Rede (Amior), critica a proposta e aponta que ela fere direitos constitucionais. “Tanto o PL 4.740/2024, apresentado pelo deputado Pedro Lupion, quanto o Marco Temporal ferem a Constituição e os direitos dos povos indígenas. O artigo 231 da Constituição diz que nós, povos indígenas, temos direito à nossa forma própria de organização e que isso deve ser respeitado pelo Estado brasileiro. Então, esses dois PLs ferem diretamente a nossa dignidade e os nossos direitos.”
Ela alerta ainda para os impactos da medida sobre as mulheres indígenas. “Isso vai afetar e impactar diretamente as mulheres, e de forma negativa. As mulheres são as mais afetadas quando há conflitos fundiários”, enfatiza. Segundo Jachinto, a tentativa de restringir a cidadania ignora a relação ancestral dos povos indígenas com seus territórios. “Para os não indígenas, principalmente para aqueles que fazem parte da máquina pública, estamos em um estado de constante migração. Mas para nós, indígenas, aquele espaço é o nosso território. Não estamos em migração dentro do nosso próprio território, porque os acordos foram feitos quando já estávamos ali há séculos. Nós não reconhecemos essas fronteiras que foram impostas”, explica.
A líder indígena também aponta as consequências dessa política para o acesso a serviços básicos. “Imagine viver sem direito ao atendimento de saúde, sem direito à cidadania, que te garante todos os outros direitos. É isso que está acontecendo. Mulheres indígenas estão vivendo sem serem reconhecidas como cidadãs, nem do Brasil, nem do Paraguai. Essa é uma violação imensa contra os povos originários, as mulheres e as crianças”, conclui.
Funai esclarece procedimentos
A Funai esclareceu que não realiza a verificação da nacionalidade de indígenas ao emitir documentos. Segundo a instituição, certidões de nascimento brasileiras são concedidas por serviços notariais e de registro (cartórios extrajudiciais), enquanto a fundação emite o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani), previsto no Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/1973). Esse registro, originalmente utilizado para controle estatístico da população indígena, tem sido progressivamente descontinuado devido ao avanço do Registro Civil de Nascimento.
Além disso, a Funai destacou em nota que tem promovido o acesso à documentação civil dos povos indígenas por meio de mais de 80 mutirões realizados em 2024, com mais de 57 mil atendimentos. Essas ações são realizadas por meio de redes interinstitucionais que envolvem cartórios, institutos de identificação, Receita Federal, tribunais de justiça e governos estaduais e municipais.
O PL 4.740/2024 está em tramitação na Câmara dos Deputados e aguarda análise nas comissões pertinentes. Ainda não há previsão de votação ou pareceres emitidos sobre a proposta. A assessoria do deputado Pedro Lupion não respondeu aos pedidos de entrevista até a publicação desta matéria.