“A semente é a continuidade da vida. E quem cuida do planeta, cuida da vida. […] A doença, ela entra pela boca, não está no nosso corpo. E a alimentação industrializada, o mau uso dos agrotóxicos nos alimentos, está causando uma grande parte das doenças do povo”, reflete a histórica guardiã de sementes, Irene Reis da Silva, 76 anos, durante a 8ª Festa da Semente Crioula e 3ª Feira de Economia Solidária, realizada em Seberi, região norte do Rio Grande do Sul, no último sábado (15).
Realizado pelo Movimento dos Pequenos Agricultores e das Pequenas Agricultoras (MPA) e pela cooperativa Cooperbio, o evento reuniu cerca de duas mil pessoas, entre camponesas, camponeses, movimentos sociais nacionais e internacionais, assim como parlamentares e representantes dos executivos municipal e federal.
Presente à celebração desde sua primeira edição, a guardiã, responsável pela preparação da polenta durante a festividade, comenta que o mais interessante da festa é o fato de a mesma ser construída pelos camponeses e camponesas. “A semente é a continuidade da vida. E quem cuida do planeta, cuida da vida. Se nós estivermos cuidando da semente, nós estamos dando continuidade à vida”.

Trabalhando com semente crioula e com a terra a sua vida toda, há 30 anos a guardiã vem se dedicando à alimentação e com plantas medicinais, cuidando da saúde como um todo, pontua.
Em 2024, o Brasil bateu recorde de liberação de agrotóxicos, segundo informações do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Foram 663 produtos aprovados, um aumento de 19% em relação a 2023, com a liberação de 555 produtos.
De geração em geração: A ancestralidade do cuidado com a terra
Agricultora camponesa, do município de Erval Seco, noroeste do RS, Eliana Lindenmeier, 31 anos, ressalta a importância da semente crioula para a vivência e fortalecimento dos camponeses e camponesas. É essencial, afirma, pensar em semente e no cuidado, não só dentro da propriedade, mas no contexto de território.
“É a partir da semente que provém o nosso alimento, de onde a gente estrutura as comunidades. De onde a gente faz a sucessão familiar no campo. Aonde a gente educa nossos filhos para cuidar da terra”.

Mãe de um filho de cinco anos, Lindenmeier vive na terra dos seus pais junto com o marido. “O meu pai já é cuidador de mudas. Ele tem variedades nativas, que ele cultiva com muito cuidado. E eu tenho esse cuidado com as sementes, com os chás. (..) O amor pela terra, pelo cuidado vai se passando de pai pra filho. Eu estou fazendo sucessão familiar”.
O filho dela já planta sementinha e indaga o que vai nascer. “Um episódio bem específico foi que ele plantou o girassol e aí, como a gente fez uma troca de semente, era aquele girassol colorido. Ele ficou muito realizado que o girassol dele não era só amarelo”.

Para além das sementes
Presente na festividade pela primeira vez, o descendente pomerano de São Lourenço do Sul, Luciano Milabert, 49 anos, conta sobre do cultivo que tem feito com as plantas alimentícias não convencionais (Pancs). Filho de pequenos agricultores é feirante há 30 anos. A produção da sua família envolve agroecologia e produção orgânica, como verduras, legumes.
O agricultor camponês relata que as pancs surgiram como uma alternativa ao recrudescimento da produção inicial, em decorrência da crise climática. “O clima tá começando a complicar. Teve uma época que o pai chegava a produzir 50 variedades de plantas diferentes pra feira”.

O contato com o cultivo das plantas veio através do projeto desenvolvido pelo projeto PancPop (Popularizando o uso de plantas alimentícias não convencionais), da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). “Estamos conseguindo vender bem as plantas, melhor do que eu pensava’. Conforme pontua Milabert muitas das plantas que estão sendo incentivadas a serem trabalhadas já era de conhecimento dos seus antepassados, como a vinagreira.
“Sem saber, a gente já estava vendendo, só que ainda não tinha essa forma, como antigamente acontecia com a agroecologia, que era uma coisa exótica. Muitos não sabiam o que era produção orgânica. Eram chamados de louco, sonhadores, que era impossível. E hoje está na moda, hoje qualquer criança sabe o que é produção orgânica, já ouviu falar o que é agroecologia. A gente não pode ter uma visão tão pequena de mundo. Vai que as nossas plantas, que o nosso alface, que a gente está acostumado, um dia, não exista mais”.

Conforme explica o professor da Furg, Carlos Alberto Saifer Jr., o projeto busca popularizar o uso de plantas alimentícias não convencionais, plantas que não são reconhecidas pelo mercado como alimento, “São plantas que não estão no cotidiano alimentar da maioria da população e que por vezes muitas populações tradicionais faziam o uso tradicional associado dessas plantas. Muitas delas foram perdendo esses saberes, outras conseguem manter até hoje. (…) A gente entende que só faz sentido trabalhar com essas plantas na perspectiva da agroecologia, economia solidária”.

Coordenadora do projeto, a professora Jaqueline Durigon pontua que assim como as sementes crioulas que têm uma alta adaptabilidade e resistência, as pancs também têm. “Elas são plantas nativas ou naturalizadas, outras introduzidas, mas que se adaptaram ao território brasileiro e foram inseridas na cultura alimentar do Brasil”, expõe.
De acordo com a coordenadora, as plantas têm uma alta capacidade de enfrentamento das mudanças climáticas. “A gente vem cultivando-as, inclusive com os agricultores. Elas passaram por ciclone, por enchente, por seca extrema, por frio extremo. E a gente vem vendo a grande resistência ou resiliência delas”.

Do outro lado da fronteira
“É parte da nossa irmandade com o MPA que já vem de alguns anos. Somos próximos, somos vizinhos. Estamos fazendo muitas trocas de sementes há mais de 25 anos para melhorar a agricultura, agroecologia”, afirma o integrante da Red de Agricultura Orgánica de Misiones (RAOM), Argentina, Enso Ort.
Ao falar do cenário atual na Argentina, Ort pontua que, com a chegada de Javier Milei à presidência, houve uma mudança muito profunda. “Ele tem outra política, muito mais voltadas aos agronegócios e não à agricultura familiar e menos à agroecologia. Por exemplo, uma de suas políticas foi dizer que não se use a palavra agroecologia nos estudos de investigação dos institutos oficiais. Os institutos públicos não podem publicar nada que diga agroecologia e menos agricultura familiar” relata.

Apesar disso, prossegue, oa mobilização seguirá, como todo movimento independente, tratando de influir, de potencializar e mostrar que agroecologia é um caminho. “Encontros como este são importantes, é onde podemos nos fortalecer, acordar planos de ação. Podemos pensar em como fazer mais trocas entre os agricultores, porque aí está a semente da agroecologia.”
Segundo aponta, se espera muitas políticas, muitos apoios, e há momentos que se pode alcançá-los. “Mas agora é o momento de nos encontrarmos, reforçarmos as propostas que temos. Como estamos sobrevivendo, como podemos assegurar o prato de comida todos os dias de uma forma saudável. É isso que queremos”, finaliza.
Integrante do Movimento de Trabalhadores Excluídos (MTE), Argentina Pilar Cifuentes, do setor rural, afirma que o movimento, neste momento segue lutando. Assim como apontado por Ort, Cifuentes afirma que o contexto atual no país vizinho está muito difícil.

“É um momento que nos querem desarmar, dispersar, separar, individualizar. Seguimos tratando de como podemos nos unir para que o alimento continue sendo produzido por parte dos produtores. Para lutar pelos direitos e o reconhecimento dos produtores que trabalham na terra e que produzem o alimento e que queremos que continuem fazendo isso. Estamos aqui, porque cremos em que tem que guardar, intercambiar e promover que os companheiros sigam tendo acesso à sementes”.

O MTE surgiu em 2002, na crise econômica que impactou a Argentina, em que muitos trabalhadores se sentiram excluídos do trabalho formal e dos direitos como trabalhadores. “Foi uma organização mais da economia popular que se começou a unir e a organizar para lutar pelos direitos como trabalhadores em uma sociedade em que excluía o produtor, excluía o recuperador, cartoneiro, e não os via como um trabalhador”, explica Cifuentes .
Filho e neto de brasileiros, Eugênio Dester, do município de Pozo Azul, província de Missiones, dos seus 61 anos, 30 foram por luta por terra, quando, através da luta ganharam 36 mil hectares em uma propriedade privada. “Alguns já tem título, outros estão terminando de pagar. E seguimos lutando por mais terra e por semente”.

Ao falar da importância da semente para sua vida, afirma que para aqueles que se criaram na luta da agricultura, quando não se tem semente não se tem nada. “A semente tem que estar na mão do produtor. Se o produtor não tiver semente, não tem nada. Porque, às vezes, falam de soberania alimentar, mas a soberania alimentar, se não há produtor e não há semente, não há nada.”
Luta e resistência
Estreando na celebração, a agricultora ecológica e militante do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Maria Lisiane Quevedo Cunha, enfatiza que são os agricultores familiares que respondem pela produção de alimentos consumidos pela população brasileira.
“Como mulher camponesa de origem cabocla da região das Missões, destaco que a agricultura familiar camponesa tem uma importância ancestral e cultural muito forte na relação com a terra. Na resistência da defesa e da valorização dos nossos direitos como camponesas”.

É na agricultura familiar camponesa, complementa Cunha, que se multiplicam as experiências de produção de alimentos saudáveis agroecológicos, conservando a biodiversidade, as sementes crioulas, as plantas medicinais e mantendo viva as comunidades rurais.
“Minha intenção de vir à festa foi conhecer a pedagogia do encontro para contribuir na 8° Edição do Encontro da Agrobiodiversidade Missioneira, que realizamos anualmente em nosso Território, e que este ano está previsto para acontecer em Santo Ângelo”.

O representante Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST- RS), Antônio da Silva, o Toninho Cepo, ressalta a luta constante pela preservação da terra, do meio ambiente e na produção de comida saudável. “Nos últimos anos estamos com o projeto de construir, de fato, a nossa reforma agrária popular. Aonde precisamos, mais do que nunca, não distribuir terra, simplesmente. Mas fazer com que, de fato, haja reforma agrária nesse país , que de fato haja uma distribuição de renda e de riquezas para o nosso povo trabalhador”.

De acordo com ele, o movimento, nos últimos anos, tem o projeto de plantar 100 milhões de árvores nos territórios de assentamento e também nas pequenas propriedades. “É muito importante que a gente faça não na teoria, mas na prática, a preservação da terra, do meio ambiente, das águas, das florestas, e principalmente das sementes”.
‘Se o campo não planta, a cidade não janta’
De acordo com o Anuário Estatístico da Agricultura Familiar 2023, divulgado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), a agricultura familiar e camponesa brasileira é a 8ª maior produtora de alimentos do mundo.
Em território nacional, aponta o levantamento, ocupa 23% das áreas e 3,9 milhões de estabelecimentos e é responsável por 23% do valor bruto da produção agropecuária, 67% das ocupações no campo.

“A agricultura familiar brasileira é a principal responsável pelo abastecimento do mercado interno com alimentos saudáveis e sustentáveis, que busca a preservação dos recursos ambientais, a cultura rural, gera ocupações rurais e promove o desenvolvimento sustentável do país”, destaca a Contag.
De acordo com o Censo Agropecuário de 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a agricultura familiar camponesa produzia, naquele ano, 87% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz e 21% do trigo do Brasil.
Já o Censo Agro de 2017 aponta que 77% das propriedades rurais foram classificadas como agricultura familiar. Em 2018, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU) as mulheres rurais (camponesas) eram responsáveis por 45% da produção de alimentos no Brasil e nos países em desenvolvimento.

