O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) suspendeu a recomendação que visava garantir que o Governo do DF (GDF) implemente o atendimento para realização de interrupções gestacionais nos casos previstos em lei, após mobilização de parlamentares e grupos conservadores. No Brasil, o aborto legal é permitido em três casos: gestação resultante de estupro, gravidez com risco de vida para a gestante e feto anencéfalo.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do DF (CLDF), deputado distrital Fábio Felix (Psol-DF), defendeu a recomendação e alertou que não fortalecer o sistema de atendimento ao aborto legal é uma forma de naturalizar a violência contra meninas e mulheres, principais vítimas de abuso sexual no país.
“Criança não é mãe e meninas não podem ser vítimas de violência sexual e estupro. Então, existe um serviço psicossocial de atendimento a essas mulheres, que trata também do processo de interrupção legal da gravidez. Esses serviços existem, mas eles precisam atender a todas as recomendações técnicas de saúde”, afirmou Felix durante sessão realizada na CLDF nesta terça-feira (18).
Segundo informações do portal InfoSaúde da Secretaria de Saúde do DF, entre 2020 e 2024, foram realizados 805 partos em meninas com idades entre 11 e 14 anos. Em 2025, de acordo com dados disponibilizados, já foram realizados 13 partos, na mesma faixa etária.
A primeira recomendação foi expedida pelo MPDFT em fevereiro deste ano, com a assinatura de cinco promotoras. O documento citava que a interrupção da gestação, nos casos previstos em lei, poderia ser feita após 22 semanas (cinco meses). O texto foi duramente criticada por grupos conservadores. Vinte e oito deputados federais, dos quais 18 são filiados ao Partido Liberal (PL), assinaram uma moção de repúdio à recomendação.
Após a repercussão, na última sexta-feira (14), o MPDFT publicou um novo texto, a Recomendação Conjunta nº 2/2025, suprimindo o período gestacional em que o procedimento pode ser realizado. O novo documento, dessa vez assinado por 26 promotores de justiça, recomenda que a Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) apresente, em um prazo de 60 dias, um plano de ação para regulamentação, orientação, estruturação e implementação de fluxo de atendimento na rede pública de saúde para assegurar a realização de interrupções gestacionais, nos casos permitidos em lei.
A recomendação, que fixa diretrizes para o atendimento, foi elaborada pelos Núcleos de Direitos Humanos do MPDFT – Núcleo de Enfrentamento à Violência e à Exploração Sexual contra a Criança e o Adolescente (Nevesca/MPDFT), Núcleo de Gênero (NG/MPDFT) e Núcleo de Enfrentamento à Discriminação (NED/MPDFT) – e colaboradores da 3ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde (Prosus/MPDFT), Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Provida/MPDFT), e das Promotorias de Justiça Cíveis e de Defesa dos Direitos Individuais, Difusos e Coletivos da Infância e Juventude (PJIJ/MPDFT).
O documento estabelece que a Secretaria deve garantir assistência integral à saúde de meninas e mulheres que buscam a interrupção gestacional, nos casos legalmente previstos, assegurando que o atendimento seja “humanizada, célere e livre de qualquer forma de constrangimento, discriminação ou violação de direitos”.
O MPDFT também pede que o atendimento à vítimas de estupro também seja realizado de forma célere, para não postergar o “exercício do direito de escolha à interrupção gestacional” e diminuir a necessidade de intervenção em avançada idade gestacional.
As demais diretrizes fixadas pelo Ministério Público na recomendação dirigida à SES-DF são:
- que assegure, de forma imediata e ininterrupta, a continuidade do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL), garantindo sua efetiva execução e a acessibilidade ao serviço;
- que garanta respeito aos termos da decisão proferida na ADPF nº 1141 MC/DF, que estabeleceu que não há limitações circunstanciais ou temporais para a realização de procedimento médico de interrupção de gravidez nos casos permitidos em lei e na ADPF nº 54 QO/DF;
- que garanta a qualificação contínua e obrigatória dos profissionais responsáveis pela assistência à saúde de mulheres e meninas, notadamente, visando o atendimento integral e especializado em casos de interrupções gestacionais permitidos em lei, na ADPF nº 54 QO/DF e na ADPF nº 1141 MC/DF;
Ataques
Em vídeo publicado em uma rede social nesta segunda-feira (17), a deputada federal Bia Kicis (PL-DF) critica a recomendação do MPDF em relação à garantia aborto legal. A parlamentar afirma que o documento permite que o procedimento seja realizado em casos de violência sexual, sem necessidade de realização de boletim de ocorrência, o que sequer é citado no texto. “Isso é uma porta aberta ao estupro”, declara.
“Não estamos falando de mudar a lei penal para impedir o aborto com a mulher estuprada, nesse momento. Estamos contrários a uma recomendação que fere a lei, fere a Constituição e que trata na verdade não de aborto, mas de assassinato de bebês com viabilidade de sobrevivência fora do útero. Então vamos continuar lutando. Eu sou apenas uma de tantos parlamentares unidos nessa causa”, continua Kicis.
Segundo a deputada, a Frente Parlamentar Católica da Câmara recorreu à recomendação.
Fábio Felix criticou a atuação dos grupos conservadores em relação ao caso. “Queria muito que este não fosse um debate ideológico, partidário, mas que fosse um debate de respeito às mulheres e aos direitos das meninas, crianças e adolescentes que não deveriam estar no meio de uma disputa política, especialmente por terem sido vítimas de estupro e de violência sexual”, defendeu.
Garantia de autonomia reprodutiva
A Frente Distrital Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto publicou uma nota em apoio à recomendação do MPDFT. Segundo a organização, o texto representa uma “importante garantia de autonomia reprodutiva no DF”.
Em relação ao limite de idade gestacional para realizar a interrupção da gestação nos casos legalmente previstos, o grupo destaca que a limitação é baseada em “um equívoco conceitual, de uma normativa técnica de 2011, que, além de infralegal, é desatualizada”. O suposto limite de 22 semanas havia sido estabelecido na Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.378/2024, derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2024.
A recomendação do MPDFT destaca que a decisão da Corte na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1141 MC/DF estabeleceu que “não há limitações circunstanciais ou temporais para a realização de procedimento médico de interrupção de gravidez nos casos permitidos em lei”
A Frente Distrital pela Legalização do Aborto realça que a limitação temporal compromete principalmente o direito ao aborto legal de pessoas mais vulneráveis e reforçou que “crenças falsas e ideologias de cunho pessoal” não devem nortear a execução de políticas públicas.
“São jovens, negras e residentes das periferias e zonas rurais as que chegam ao serviço de interrupção gestacional com gestações avançadas, onde encontram uma equipe habilitada a executar o direito à interrupção, mas limitada por normativas técnicas e barreiras institucionais obsoletas”.
O Brasil de Fato DF procurou a assessoria de comunicação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios para comentar sobre a decisão, no entanto, até o fechamento desta matéria, o órgão não havia respondido. O espaço segue aberto para manifestação.
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