Com uma grande manifestação no Zócalo, na Cidade do México, no último domingo (9), a presidenta Claudia Sheinbaum se dirigiu a mais de 350 mil pessoas. No meio de aplausos e vivas de milhares de pessoas que vieram de diferentes partes do país para ouvi-la, Sheinbaum declarou com convicção: “Sempre afirmamos que o México é uma grande nação, com um povo digno e corajoso. Não somos mais, mas também não somos menos que os Estados Unidos. Acima de tudo, sempre defenderemos o respeito ao nosso amado povo e à nossa pátria.”
Diante de uma praça cheia de bandeiras e guarda-sóis, a presidenta mexicana insistiu mais uma vez que a posição que defende é de diálogo e colaboração, mas não de subordinação. “Provavelmente há pessoas que não estão interessadas em um bom relacionamento entre nossos povos e governos, mas tenho certeza de que, com um diálogo respeitoso, o respeito sempre pode ser alcançado. Até agora, tem sido assim”, afirmou, evitando posições de confronto com os Estados Unidos e deixando claro o compromisso de defender a soberania nacional.
O evento havia sido originalmente convocado para anunciar as medidas que o México tomaria após a decisão dos Estados Unidos, que, em 4 de março, declarou a imposição unilateral de tarifas de 25% sobre as exportações do México e do Canadá, apesar do acordo comercial assinado pelo próprio presidente Trump durante seu primeiro mandato. Ao mesmo tempo, Washington anunciou tarifas de 10% sobre as exportações chinesas.
Diferente da China e do Canadá, que responderam imediatamente com medidas retaliatórias, a presidenta Sheinbaum informou naquele mesmo dia, durante sua Mañanera del Pueblo, que o México havia preparado um pacote de respostas que seria revelado em um evento público no Zócalo da Cidade do México.
A economia do México é altamente dependente dos Estados Unidos, já que cerca de 80% de suas exportações vão para lá. No entanto, dois dias depois, após uma conversa telefônica entre Trump e Sheinbaum em 6 de março, Washington voltou atrás na decisão de impor as tarifas. Essa foi a segunda vez que o governo dos EUA recuou de uma ameaça de tarifas; a primeira havia sido um mês antes, em 3 de fevereiro.
Interpretado como uma vitória diplomática sobre Washington, o evento no Zócalo se transformou em uma grande celebração popular e demonstração de apoio maciço ao governo Sheinbaum.
Nos meses que antecederam sua vitória, analistas e comentaristas questionaram, muitas vezes com tom misógino, a capacidade de Sheinbaum de assumir a liderança do país, sugerindo que ela ficaria à sombra do carismático Andrés Manuel López Obrador.
No entanto, sua maneira de lidar com as relações com o governo dos EUA não só fortaleceu sua posição internacional, mas também consolidou sua popularidade no México. De acordo com pesquisas recentes, a aprovação de seu governo aumentou desde que ela assumiu o cargo, em outubro passado, passando de 70% para 85%, atingindo níveis históricos.
“Um enorme desafio”
O Brasil de Fato conversou com Esther Alonso, doutora em Relações Internacionais pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e colaboradora da primeira senadora imigrante do México, Karina Ruiz. Alonso ressalta que as tarifas que os Estados Unidos estão tentando aplicar têm como objetivo gerar mudanças na estrutura produtiva do país, o que terá impactos internacionais. E México e o Canadá são particularmente afetados pelos altos e baixos políticos e econômicos de Washington.
“O discurso Make America Great Again é a forma como o protecionismo que está sendo aplicado é traduzido, com a intenção de impulsionar sua indústria. No entanto, isso colide com a realidade da globalização, na qual estamos imersos. Há uma interconexão e interdependência econômica muito forte entre nossos países. É por isso que o protecionismo que eles estão tentando aplicar está afetando a economia, não só a deles, mas também a de outros países”, afirma.
A imposição de tarifas contra o México e o Canadá não seria apenas uma violação dos acordos de livre comércio, mas também poderia ter efeitos múltiplos e até contraproducentes para os próprios Estados Unidos. Por um lado, os produtos exportáveis do México poderiam sofrer uma queda nas vendas, já que ficariam mais caros nos Estados Unidos. Por outro, isso poderia levar a uma forte aceleração da inflação nos EUA. Esse é um dos principais argumentos de negociação que Sheinbaum colocou sobre a mesa.
Por sua vez, em sua política de diálogo, Sheinbaum fez concessões significativas diante das ameaças de Trump, como o envio de mais 10 mil soldados para a fronteira norte, a recepção de milhares de migrantes deportados e a extradição de 29 líderes de cartéis de drogas. Essas medidas foram apresentadas como parte de uma estratégia para fortalecer as políticas de segurança do México.
No entanto, essa situação de confronto com Trump deixou a esquerda mexicana em uma posição complicada. Depois de anos lutando contra os acordos de livre comércio e até mesmo contra os perigos da militarização da questão migratória, ela agora se vê defendendo muitas dessas políticas diante dos ataques de Washington.
“Esse vai e vem sobre as tarifas, com Trump tirando, colocando e voltando a colocá-las, é um jogo em que ele tem a vantagem. Acho que é ingenuidade pensar que ele não conhece os riscos inflacionários aos quais pode se expor. Ele sabe muito bem as cartas que está jogando”, enfatiza Alonso.
Ela observa que “o México está andando na corda bamba. De alguma forma, ele é obrigado a interromper os fluxos migratórios. E o que isso fará é que muitos migrantes que não poderão mais cruzar a fronteira serão forçados a voltar ou ficar aqui. Isso certamente gerará mudanças que forçarão o México a repensar suas estratégias”.
É nesse contexto que o México está construindo uma estratégia para enfrentar os desafios impostos pelos Estados Unidos. Alonso destaca a importância da “mobilização popular”, que ela considera essencial para o projeto da Quarta Transformação. O termo cunhado por Andrés Manuel López Obrador (AMLO) se refere a mudanças políticas, sociais e econômicas que ele buscou implementar no seu governo. A primeira transformação foi a independência do país, a segunda a reforma liberal do século 19 e a terceira, a Revolução Mexicana do século 20.
“A mobilização popular é fundamental. Ela reforça a identidade mexicana e o senso de unidade. Foi isso que vimos na última reunião na Praça Central, uma demonstração de força e apoio à presidente. É um ato que dá legitimidade às ações do governo. Faz parte do jeito de agir da Quarta Transformação (4T), em que o povo é sempre levado em conta”.
No entanto, um dos principais efeitos das imposições de Washington não está na esfera econômica ou nas políticas de migração. Em vez disso, os planos de Trump fazem com que os países — principalmente na América Latina e no Caribe — tenham que adotar “medidas defensivas”. Ou seja, correr atrás das próprias iniciativas de Washington, uma estratégia que busca gerar um efeito disciplinar.
Alonso ressalta que esse é “um enorme desafio”. Ela explica que “desde que Trump chegou ao poder, grande parte da agenda doméstica do México tem girado em torno de responder às suas políticas. Isso consome tempo e recursos que poderiam ser usados em outros projetos. Por isso, é importante buscar maneiras de gerenciar nossas prioridades, sem deixar de lado as transformações internas que precisamos continuar a fazer”.
Na tentativa de “sair dessa posição defensiva”, o governo mexicano entrou com uma ação na Suprema Corte dos EUA contra fabricantes de armas dos Estados Unidos, acusando-os de facilitar a venda ilegal de armas para os cartéis de drogas. O caso, conhecido como Smith & Wesson Brands, Inc. v. United Mexican States, busca responsabilizar os Estados Unidos pela venda ilegal de armas aos cartéis. O México está exigindo US$ 10 bilhões (R$ 55bi) em compensação por danos.
“Essa é uma estratégia prioritária porque os Estados Unidos têm um negócio muito lucrativo com eles. Há um duplo padrão: eles acusam o México de estar do lado dos traficantes de drogas, mas são os americanos que fornecem as armas”, explica Alonso.
Ela ressalta que o caso pode servir de exemplo para outros países da América Latina e do Caribe. “Embora às vezes haja dúvidas sobre as consequências, é importante usar essas ferramentas jurídicas internacionais. Isso nos dá visibilidade e mostra que nossas demandas vão além do discurso”.