A Comissão de Anistia foi palco, nesta quarta-feira (26), de um alegórico momento em que passado e presente se entrelaçam em meio à luta por um horizonte de amadurecimento democrático no país. Após um ano e meio de articulação política, um grupo de descendentes de pessoas impactadas pela ditadura civil-militar (1964-1985) apresentou um pedido de anistia coletiva como forma de exigir do Estado brasileiro um ato simbólico de reconhecimento das violências sofridas por suas famílias. A iniciativa é inédita no Brasil e surge após 40 anos do fim do regime dos generais.
O documento foi apresentado à Comissão de Anistia no momento em que o colegiado se reunia em Brasília (DF) para análise de novos processos. A entrega ficou por conta do defensor público Bruno Arruda, coordenador do Observatório Nacional sobre o Direito à Memória, à Verdade e à Justiça de Transição da Defensoria Pública da União (DPU).
“Tradicionalmente, a gente se acostumou a ver como vítima [da ditadura] somente aquela pessoa que sofreu [diretamente], que foi torturada, que foi presa indevidamente, que sofreu patrimonial ou fisicamente na época. Só que, quando a gente investiga a fundo essas histórias, descobre que houve traumas familiares que são passados de geração em geração e que ficam ocultos. Isso fica muito evidente quando se vê o filme Ainda Estou Aqui, por exemplo, pois a gente vê como aquilo marca uma família. O pai da família foi preso e morto, mas a família inteira ficou sofrendo com aquilo”, ilustra o defensor, em conversa com o Brasil de Fato.
Ele aponta que são muitas as consequências de ordem psicológica verificadas na vida de descendentes de perseguidos pelo regime. “Isso tem impactos na educação, por exemplo. Muitas dessas pessoas têm dificuldade de aprendizado, de relacionamento, têm medo da institucionalidade, do Estado, etc. Elas têm a vida alterada por conta de uma violência que não foi exatamente direcionada a elas, mas que as afetou. Temos casos de filhos que foram levados para assistirem a tortura dos pais. Essas pessoas sofreram danos diretos, enquanto outras sofreram indiretamente porque viram o pai desaparecer, por exemplo. A ideia do pedido é ampliar o conceito de vítima para que essas histórias venham à tona, para que o Brasil reconheça que esses casos também são fruto da violência que o Estado praticou contra elas.”
O pedido reúne filhos, netos, sobrinhos e enteados de perseguidos políticos. Filha de um economista e professor da Universidade de São Paulo (USP) assassinado pela ditadura em 1970, a professora Marta Nehring é uma das três responsáveis pela produção do documento, que ficou a cargo do Coletivo Filhos(as) e Netos(as) por Memória, Verdade e Justiça. Ela argumenta que a solicitação feita ao colegiado não abrange apenas os signatários, alcançando o conjunto da sociedade brasileira na sua relação com a memória histórica.
“Nós somos a ponta de lança de um grupo histórico, ideológico e descendente de pessoas que lutaram, mas algumas delas foram [diretamente] impactadas porque sabemos que tivemos crianças torturadas, crianças presas, crianças desaparecidas. Quando falamos de uma representação de filhos e netos que buscam avaliar os efeitos transgeracionais da repressão, estamos falando de um coletivo que não é constituído formalmente, ou seja, um coletivo sem CNPJ e aberto a novas adesões o tempo todo porque tem muitas pessoas que se descobrem [com o tempo] filhas e netas de pessoas que sofreram com a repressão. Essa nossa construção é histórica pelo ato que estamos gerando neste momento, mas é histórica também porque ela se encontra dentro de uma luta que não começa agora, uma luta caudatária dos familiares.”

Filho do ex-presidente da República João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964, o escritor João Vicente Goulart esteve no local para acompanhar o protocolo do pedido. Em conversa com o Brasil de Fato, ele disse considerar a iniciativa “fundamental”. Atual presidente do PCdoB do Distrito Federal, Goulart celebra a ação do coletivo destacando que o ato surge no rastro da influência que o filme Ainda Estou Aqui vem exercendo no imaginário da população brasileira no que se refere à memória da ditadura.
“Todo este processo [de avanço conservador] que nós vimos anos depois do golpe de 1964 é fruto da falta de punição. Nos acordos internacionais, o crime de lesa-humanidade não é anistiável, e aqui no Brasil nós anistiamos agentes do Estado brasileiro que torturaram, mataram, desapareceram com corpos. Isso é abominável. Eu acho que, com o filme, isso trouxe uma nova visão para a sociedade brasileira, que andava um pouco distante dos fatos de 1964. Temos que louvar esta iniciativa aqui e pedir que o Estado não faça mais o que o governo atual, um governo popular, fez no 1o de abril do ano passado no 1o de abril, quando proibiu que as demais instâncias da gestão relembrassem o golpe de 1964.”
Pesquisa
Também responsável pelo pedido, a apicultora Camila Bianchi conta que o grupo se dedicou a uma vasta pesquisa em documentos internacionais para basear a peça entregue à Comissão de Anistia. “Nós fizemos um estudo do que havia na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no campo das reparações. Nós lemos quase todos os documentos que estão ali em inglês e espanhol para compreender esse campo e também para termos a certeza de que o Brasil pouco avançou no campo das reparações”, frisa, ao comparar o cenário nacional com diversos casos de procedimentos de reparações relacionados a países da América Latina, por exemplo.
A militante pró-anistia conta que o pedido foi formatado após uma consulta cuidadosa a profissionais do campo dos direitos humanos e outros especialistas. “Por isso isto aqui não é só um pedido que foi protocolado com intencionalidades. É um pedido vivo porque nós como coletivo, como movimento vivo, o que nós temos? Um amadurecimento. A gente tem recebido pessoas que estão se vendo, que estão se compreendendo hoje vítimas da tirania que foi a ditadura e que hoje estão podendo dar voz às suas histórias, aos seus relatos. Nós construímos uma metodologia de acolhimento com profissionais da saúde mental, da psicologia, para que essas pessoas tivessem o apoio necessário para trazerem os seus relatos. Então, por mais que esse pedido seja para todos num sentido irrestrito, ele também traz relatos verídicos com fatos que embasaram o nosso pedido.”
Professora de psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Kênia Maia carrega na própria árvore genealógica o impacto traumático do período ditatorial. Ela, que é filha e prima de militantes que ousaram desafiar os interesses do regime, conta que hoje divide com a história dos familiares o peso mórbido do passado. Como forma de mergulhar ainda mais no tema e seguir os trilhos da busca por justiça, a professora hoje se engaja no coletivo responsável pelo pedido de anistia e compartilha com o grupo o repertório adquirido na jornada profissional de estudos de casos semelhantes. Pesquisadora de efeitos transgeracionais gerados pela violência de Estado, ela sublinha: a ressonância gerada pelo trauma tem alcance elástico nas famílias, abarcando muitas gerações, ainda que de forma subjacente.
“Em função do silenciamento, do esquecimento forçado da tortura, da prisão, da morte, do desaparecimento de pessoas vítimas da ditadura, a temática desse trauma não foi desenvolvida nem pela própria psicologia brasileira. Então, nós estamos atrasados nisso”, comenta. A professora também destaca que, ao analisar textos da CIDH, o grupo observou, entre outras coisas, a ocorrência de medidas reparatórias no campo da atenção psicossocial e localizou exemplos de políticas com esse perfil em países como Chile, Argentina, Colômbia.
“Já do Brasil não tem praticamente nada, por isso entendemos que o nosso país está muito atrasado nessas medidas. A política de silenciamento, que foi resultado inclusive da própria Lei da Anistia (lei nº 6.683/1979, anistiou esses monstros e fez com que tudo ficasse supostamente apaziguado, gerando uma espécie de apagamento desses episódios. Por isso também um pedido como esse de anistia coletiva é tão importante, pois ele ajuda a chamar a atenção para o problema”, argumenta Kênia Maia.
Pedidos
É de olho nessa realidade que o grupo pleiteia, no pedido de anistia, que o Estado brasileiro promova políticas de reparação no campo da memória. A lista inclui museus que documentem a história da ditadura e dos perseguidos, editais voltados ao segmento audiovisual para incentivar produções como o filme “Ainda estou aqui”, políticas de inclusão de debates do tipo nos currículos escolares, entre outros pontos. “Não é só falar que houve uma ditadura, e sim falar o que a ditadura fez. Tem que contar para crianças, para os adolescentes, jovens, adultos e prover através de lei que seja instituído. Outro pedido nosso é para que os temas dos direitos humanos, da história da ditadura e da violência de Estado entrem na formação dos agentes de segurança pública no país”, emenda Kênia.