Oficialmente Porto Alegre faz 253 anos em 26 de março. Para nós – historiadores, ativistas e educadores que integramos e assessoramos o Projeto PoAncestral – essa comemoração é totalmente descabida, pois reflete uma tradição imposta cujo objetivo é apagar a longa história de ocupação humana da cidade e região por povos originários, desde 12 mil anos, pelos menos, como demonstram pesquisas arqueológicas recentes. Além disso, tal matriz colonialista invisibiliza também as formas de ocupação violenta da cidade – desde a expulsão contínua de comunidades indígenas, quilombolas e periféricas – até a destruição de vestígios dos seus legados tecnológicos e culturais.
As muitas peles que habitam a cidade
Tal situação se mantém no tempo presente em que os projetos de “revitalização” desrespeitam tradições e os modos de vida dessas populações. Ao ocultar a ocupação milenar de povos originários (Guaranis, Kaingangs, Charruas, Minuanos, Xoklengs), se omite o quanto de tecnologias e saberes esses povos nos deixaram de herança. Saberes que usufruímos no dia-a-dia e que ignoramos pelo apagamento intencional realizado pelas classes dominantes e a oficialidade. Ser e estar em Porto Alegre remonta à inteligência ocupacional desses povos que se instalaram às margens do lago. O próprio nome – Guaíba, algo como “encontro das águas”, do tronco tupi-guarani – soa estranho e deslocado para a historiografia oficial, que valoriza o ambiente natural apenas como recurso a ser explorado.

Na contracorrente dessa historiografia eurocêntrica, descontextualizada e segregacionista há centenas de experiências pedagógicas, projetos, pesquisas e estudos nos mais diversos setores sociais na cidade que se debruçam a desvelar essas relações de poder. E a dar visibilidade às nossas ancestralidades ameríndias e africanas.
Nesse sentido, o PoAncestral se coloca como parte desse movimento de insubordinação à lógica colonialista de contar e produzir a história de nossa cidade. Porto D’Ornelas, São Francisco do Porto dos Casais, Porto do Dornelles, Porto de Viamão, Porto dos Casais, Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, São Francisco do Porto dos Casais, Porto Alegre, “Portinho”, PoA.253. Nesses nomes-avatares, peles que te habitam, Porto Alegre, há muito mais gente e vidas esquecidas do que quer crer nossa vã historiografia dominante.
Sob o alcaide do chapéu de palha que trabalha para as empreiteiras
Temos sido submetidos em Porto Alegre, com Sebastião Melo (MDB) e Betina Worm (PL) a um governo que solapa, obstinadamente, os direitos da maioria da população, orientado para privatizar o patrimônio público duramente conquistado. Saúde, educação, áreas ambientais, transporte público (Carris) e abastecimento de água (Dmae) são exemplos do desmonte assustador em curso. Esvazia os espaços de representação da sociedade no planejamento urbano e conselhos de direitos, restringindo ainda mais a já empobrecida participação nos debates sobre os rumos da cidade.
Como se não bastasse o histórico de corrupção do governo anterior, volta as costas para as periferias. O exemplo mais recente é o aumento das passagens de ônibus – apesar da privatização da Carris, da extinção dos cobradores de ônibus e dos constantes subsídios fornecidos pelo governo municipal a essas empresas. Além disso, sucateia, precariza os serviços públicos e maltrata sistematicamente, com o apoio de uma maioria no Parlamento, os funcionários públicos municipais, impondo um severo arrocho salarial e destruição da carreira pública. Justamente eles, que colocam a cidade de pé e em funcionamento todos os dias.
Melo e Worm estão centralmente preocupados em dispor a cidade para as empreiteiras, as gigantes do mercado imobiliário, para o grande capital. Matando todos os dias o patrimônio ambiental que ainda nos resta para agradar os senhores da casa-grande, na lógica que reifica o extrativismo imobiliário urbano neoliberal.
Calibrar o olhar
Na contracorrente da barbárie programada, são muitas as iniciativas para calibrar o olhar, para apurar o ouvido e refazer nova síntese. Movimentos sociais, pesquisas e projetos pedagógicos se entrelaçam para visibilizar os povos originários, quilombolas e periféricos dessa cidade viva, que resiste no dia a dia. Entre as opções, um convite a conhecer o PoAncestral: www.ufrgs.br/poancestral/, com repositório para pesquisas e organização de atividades pedagógicas, e sua primeira publicação, que fornece uma visão de conjunto e diversa sobre a iniciativa.
E novidades vem aí, com a plataforma digital para (re)conhecer a presença ancestral dos povos indígenas em Porto Alegre. A começar pelos Mbya-Guarani. A plataforma deve ser lançada ao público nos próximos dias, sob a condução de um grupo de pesquisadores e educadores, dos quais um de nós faz parte, juntamente com outros colegas que integram a curadoria sobre os povos originários do PoAncestral em 2025.
Resistimos, portanto, porque sabemos que o futuro só tem chance de ser, verdadeiramente, se calcado na ancestralidade insurgente e rebelde.
* Inês Vicentini, Marco Mello, Roselena Colombo são educadoras/educador, integram o Coletivo PoAncestral.
* João Maurício Farias é educador e pesquisador, compõe como convidado pela Curadoria em Povos Originários do Coletivo PoAncestral.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
