Uma pintura com elementos da cosmologia dos povos andinos vem chamando a atenção da população de Porto Alegre que passa pela Avenida João Pessoa, esquina com a rua Lopo Gonçalves, na Cidade Baixa. A própria sede da entidade cultural Fundação Ecarta é uma obra da 14ª Bienal do Mercosul, que ficará como um marco para a cidade.

Convidado pela bienal, o artista do povo indígena aymara, construtor, engenheiro civil e arquiteto Freddy Mamani está desde fevereiro pintando a fachada. Seus trabalhos ficaram conhecidos como a nova arquitetura andina. É reconhecido por suas obras vibrantes e coloridas, principalmente em El Alto, cidade próxima a La Paz, na Bolívia, onde construiu mais de cem edifícios, os quais se transformaram em orgulho nacional.
São prédios vibrantes com formatos não convencionais, que mesclam estéticas variadas: arquitetura ocidental moderna; elementos do barroco latino-americano e chinês; influências andinas; folclóricas, e ainda toques de futurismo, animé e ficção científica. Suas obras foram expostas na Fundação Cartier, em Paris, no MoMA, Nova Iorque, na Bienal de Sydney, entre outros.
Inauguração da obra com visita guiada
Uma visita mediada com o artista acontecerá nesta quinta-feira (27), das 10h às 12h, e marca a abertura da 14ª Bienal do Mercosul, que terá atividades em 18 espaços, e prossegue até 1º de junho.
A atividade inicia no interior da galeria, onde Mamani apresentará sua trajetória e principais influências. Logo depois, seguirá para a área externa, onde o artista compartilhará seu processo de planejamento e criação da obra.
Estreando como um dos espaços da Bienal do Mercosul, a Ecarta também terá obras de artistas da China, Colômbia e Guadalupe na parte interna da casa. O coquetel de inauguração será no sábado (29), às 11h, precedida de conversa com o curador-pesquisador convidado Lucas Dilacerda.
O presidente da Fundação Ecarta, Marcos Fuhr, disse estar muito feliz e honrado com esta participação na bienal, que coincide com as festividades de 20 anos da fundação. “Representa um reconhecimento da nossa atuação como espaço de arte contemporânea desde 2005, ano em que inauguramos nosso primeiro projeto, que é justamente a Galeria Ecarta”, comemora.
Confira entrevista
Brasil de Fato RS: Você é um dos representantes da nova arquitetura andina. O que isso significa?
Freddy Mamani: A arquitetura neo-andina é uma nova arquitetura que nós inovamos nos últimos anos porque nós tentamos quebrar esquemas da arquitetura mais antiga, ou uma arquitetura colonializada. Então, nossa arquitetura, a arquitetura neo-andina, recupera a identidade dos nossos povos milenários de Bolívia e América Latina, porque nós temos uma arquitetura milenária que podemos exportar ao mundo, não copiar do exterior, porque nós temos uma riqueza cultural na América Latina.
É por isso que nós tentamos inovar, e eu acho que essa arquitetura já é para exportação, ou seja, nós já estamos trabalhando em diferentes países da América do Sul, até mesmo na Europa. Também trabalhamos com a arquitetura chamada de Cholet.
Cholet é um termo mais artístico e a arquitetura neo-andina é um termo mais acadêmico. Então, cholet está muito ligado aos turistas nacionais e, mais do que tudo, estrangeiros que nos visitam na cidade de El Alto, lá em Bolívia.
É importante através da arte, da arquitetura, mostrar e nos integrar entre povos.
De que região da Bolívia você vem?
Eu nasci em uma pequena comunidade, nem mesmo em uma comunidade, em algumas montanhas. Chama-se Catavi, na província de Aroma, no município de Sica Sica, no departamento de La Paz. Está mais ou menos a umas 3 horas da cidade de La Paz onde eu nasci, mas depois, aos meus 13 anos, eu migrei para a cidade de La Paz, a cidade de El Alto, local que eu vi crescer como cidade.
Hoje, este ano, justamente, cumpriu 40 anos. É a cidade mais jovem da Bolívia e é a segunda cidade mais povoada da Bolívia, e ao mesmo tempo está mais ou menos a 4.070, 4.100 metros sobre o nível do mar. Então, como uma cidade jovem, não tinha uma identidade arquitetônica. Graças à arquitetura neo-andina, se conhece a cidade do El Alto.
E como começou o seu trabalho como artista?
A arquitetura surgiu depois da minha primeira carreira que me titulou da Faculdade de Tecnologia da Universidade Superior de San Andrés. E, com o tempo, eu fui viajando em diferentes países do mundo e diversas universidades me convidaram para conferências, também para as bienais, como, por exemplo, aqui em Porto Alegre.
E, ao longo dos anos, foram me conhecendo mais e gostando também do meu trabalho.
Como surgiu esse convite para pintar aqui o prédio da Fundação Ecarta?
Fui convidado para a Bienal de Mercosul e eu acho que eles procuraram esse tipo de espaços para poder plasmar minha arquitetura ou meus desenhos arquitetônicos. E a Fundação Ecarta foi uma das que aceitaram para poder fazer o meu trabalho.
E eu acho que foi importante plasmar, pois vai ser um dos únicos edifícios com ícones andino-amazônicos.
Você já falou da questão das cores da nossa América Latina, mas também tem símbolos da cosmovisão andina, como a Chakana, a cruz andina…
Sim, eu acho que cada povo sempre tem um ponto de referência. Sempre trago esse toque da Chakana, porque eu venho de lá. Integramos ícones andino-amazônicos e eu acho que é importante levar nossos selos sempre a diferentes lugares do mundo.
O Brasil, ele é um país da América Latina que não se identifica tanto com os demais povos latinos. Alguns dizem que por causa da língua. Porque é o único país que fala o português, e não o espanhol. Como integrar mais essa arte e essa cultura latino-americana?
Quando eu viajei a diferentes cidades da América Latina, eu vi essa diferença, essa diversidade de culturas que existem na América Latina. Mas nós precisamos valorizar, ter essa autoestima de culturas, de identidade, de nos conhecer entre irmãos.
Isso é o que nos falta como latino-americanos, porque sempre estamos com a vista para o Ocidente e dizemos que eles são melhores do que nós. Mas não, mentira. Nós somos mais capazes do que eles e podemos exportar o nosso desde nossos povos.
Desde qualquer lado do país, de diferentes nações, podemos exportar o nosso em cultura, em esporte, em música, em gastronomia, em arquitetura, etc.
Você falou da importância da ancestralidade, de trazer o passado. Aqui no Brasil, os povos indígenas têm trazido muito essa questão, que para enfrentarmos as mudanças climáticas e fazermos essa transição que nosso planeta, Pachamama, está pedindo, precisamos resgatar o ancestral.
É importante resgatar o passado, o ancestral, porque nós, como seres humanos, somos parte da natureza. Não somos donos da natureza, mas a natureza é dono de nós. Então, eu acho que é importante reconhecer esse conceito, desde esse ponto de vista, também estar sempre em harmonia com a natureza, com o meio ambiente e cuidar principalmente para os futuros seres humanos que vêm por diante.
