O ser humano é um ser curioso e insaciável. Está sempre inventando coisas e descobrindo novos seres. Desde que saiu da África, há alguns milhões anos, foi descobrindo novas terras, plantas, animais, rios e lagos. Especialmente estavam interessados em metais, como os europeus do século XVI com fome de ouro e de prata e, em nossos dias, a busca de terras ricas que contém o lítio e outros materiais para a alta tecnologia. Descobriram como se compõe a matéria, identificaram os elementos básicos da vida, os genes, buscam descobrir a galáxia mais distante para compreender como começou o nosso universo. Não há coisa que ele não queiram descobrir e dar-lhe um nome. E ainda assim nem todos descobriram a si mesmos.
Uma coisa, entretanto, tardaram em descobrir: a própria Terra. Só em 15 de setembro de 1519 por Fernão de Magalhães descobriu que a Terra era redonda, coisa que terraplanistas negam. Mas a Terra mesma como planeta não havia sido ainda descoberta. Foi preciso que astroanutas saíssem da Terra e lá de fora, de suas naves espaciais ou da Lua descobrissem, maravilhados, a Terra.
Talvez o sentido secreto das viagens ao espaço exterior tenha tido esse significado profundo, com fina intuição expresso pelo astronauta J. P. Allen: “Discutiram-se muito os prós e os contras com referência às viagens à Lua; não ouvi ninguém argumentar que deveríamos ir à Lua para poder ver a Terra de lá. Depois de tudo, esta foi seguramente a verdadeira razão de termos ido à Lua”.
Trago aqui o testemunho de outros astronautas, contidos num riquíssimo livro de Frank White, The Overview Effect: space exploration and human evolution, Boston 1987.
Sigmund Jähn, outro astronauta, ao regressar à Terra, expressou assim a modificação de sua consciência: “Já são ultrapassadas as fronteiras políticas. Ultrapassadas também as fronteiras das nações. Somos um único povo e cada um é responsável pela manutenção do frágil equilíbrio da Terra. Somos seus guardiães e devemos cuidar do futuro comum”.
Impressionante e cheio de reverência é o testemunho do astronauta Gene Cernan: “Eu fui o último homem a pisar na Lua em dezembro de l972. Da superfície lunar olhava com temor reverencial para a Terra num transfundo de azul muito escuro. O que eu via era demasiadamente belo para ser compreendido, demasiadamente lógico, cheio de propósito para ser fruto de um mero acidente cósmico. A gente se sentia, interiormente, obrigado a louvar a Deus. Deus deve existir por ter criado aquilo que eu tinha o privilégio de contemplar”.
Essa percepção de ter contemplado a Terra de fora da Terra, “um pálido ponto azul”, “que se esconde atrás de nosso polegar” circulando ao redor de um sol de subúrbio, de quinta grandeza, na imensidão escura do universo, suscitou nos astronautas um sentimento de sacralidade e de responsabilidade: a Terra é pequena e frágil, galardoada por uma exuberante natureza e com uma imensidade de formas de vida, superpovoada por seres inteligentes, os humanos, que infelizmente vivem litigando entre si e não conseguem pôr-se de acordo como o fazem as três trilhões de células de seu corpo. Vivem disputando por espaços e por pedaços da Terra, sabendo que ela é de todos e de lá de cima não se notam os limites das nações, traçados arbitrariamente pelos seres humanos. Terra e Humanidade formam uma única entidade com o mesmo destino. Somos Terra que sente, pensa e ama.
Hoje estamos descobrindo que nós somos os principais responsáveis pela devastação que está ocorrendo nos principais biomas. Inventamos até um nome para essa agressividade, a era do antropoceno, que lentamente está mudando para a era do necroceno (matança de espécies) e, por fim, do piroceno (os grandes incêndios florestais). Custa-nos aceitar a nossa responsabilidade coletiva, pois há muitos, especialmente CEOs de grandes empresas e mesmo do presidente tresloucado da maior potência devastadora da Terra que se declara um negacionista assumido.
Depois de termos feito o descobrimento da Terra, temos que descobrir a nossa responsabilidade e o imperativo ético que nos foi imposto, claramente expresso nas Escrituras: o de sermos os “os cuidadores e guardadores do jardim do Éden”(Gn 2,15). Mas como reconheceu o grande biólogo E.Wilson fizemo-nos o “Satã da Terra” e transformamos o jardim do Éden “num matadouro”.
Até onde pode chegar a nossa loucura? Até a autodestruição, já que criamos todos os meios para isso? Ou nos salvará o princípio esperança que nos suscita novas utopias e mudanças de direção? Essas ocorreram na história. Quem sabe, descubramos nosso lugar no conjunto dos seres, como regeneradores e salvadores da Casa Comum, que nos garantiriam ainda outro tipo de futuro, diverso desse, sombrio e ultra-aquecido.
Cremos em São Paulo: ”a esperança nunca nos defraudará (Romanos 5,5)”. O que nos resta é o esperançar de Paulo Freire, usar todos os meios para tornar o possível impossível, e o provável, improvável. Aí então teríamos ainda futuro. E haverá.
*Leonardo Boff escreveu A Terra na palma da mão, Vozes 2016; Cuidar da Casa Comum, Vozes 2024.