A expressão vivandeiras vem do francês, e significa “mulher que vende víveres”. No contexto militar, as vivandeiras eram as mulheres que acompanhavam as tropas. No senso comum, muitas vezes essas mulheres são associadas ao trabalho de prostituição, mas muitas delas eram esposas e mães que decidiam acompanhar seus familiares à frente de batalha, ou mulheres que se integraram ao esforço de guerra pela nação. Sua atuação era ampla, preparando e fornecendo alimentos, cuidando de soldados (quando deram origem, inclusive, a profissões como a de enfermeira), lavando e costurando roupas, oferecendo suporte emocional aos combatentes etc. Posteriormente, o trabalho das vivandeiras será profissionalizado e receberá um nome formal: apoio logístico. Quando o trabalho é valorizado, ele também é masculinizado, e a função foi, por anos, reservada apenas aos homens. Não existe combatente sem suporte logístico, mas é importante ressaltar que, nessa relação, o primeiro tem primazia sobre o segundo. Na estratégia, define-se o efetivo combatente, e então a logística necessária para que ele entre em ação. Sem o combatente, os recursos disponíveis, sejam da natureza e na quantidade que forem, não são suficientes.
No Brasil, outro grupo também foi batizado com o nome de vivandeiras. Elio Gaspari conta que o insuspeito Marechal Castelo Branco, ao referir-se aos políticos civis que iam aos quartéis para buscar apoio militar para as suas propostas políticas, chamou-os vivandeiras. “Eu os identifico a todos. São muitos deles os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias ao Poder Militar”.
O apelido não deixa de ser correto. Políticos civis não pretendiam estar na frente de batalha de um golpe em que o comando estava no elemento militar, mas deixavam claro estar a postos para prestar suporte logístico, financeiro, político e social à caserna. A relação de comando permanece a mesma da palavra original. Sem apoio civil, não teria existido uma ditadura como a brasileira. Mas sem o elemento militar, sem o argumento da força, o golpe de 1964 dificilmente teria ocorrido. Vem daqui, da identificação da força motriz do golpe, a polêmica historiográfica sobre os conceitos de ditadura militar, ditadura civil-militar, ditadura burocrático-militar, entre outros.
Chegamos agora ao período recente, governo Bolsonaro. Diferentes analistas tentaram estabelecer, com respostas distintas, à questão: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Em diferentes textos, já afirmamos nosso ponto de vista: Bolsonaro é fruto dos quartéis. Iniciou sua campanha por lá, e tomou um grupo de generais (agora réus, que identificamos enquanto organizados no Partido Militar) como eixo de sustentação do seu governo, força dirigente da coalizão política. Enquanto deputado, Bolsonaro foi uma vivandeira. Mas também, certamente, a caserna se beneficiou ideologicamente do político, que assumiu publicamente pautas polêmicas, como a defesa da, conforme por eles entendida, “revolução de 1964”, que militares sustentavam apenas em eventos internos aos quartéis; e financeiramente, por meio de inúmeras emendas. Sem o suporte do Partido Militar, e a tolerância (e por que não, estímulo?) da Instituição Militar, Bolsonaro não teria se tornado presidente. Mas a relação de comando fica clara agora, com os julgamentos. Bolsonaro e generais militantes estão sob o crivo da Justiça. No caso da Instituição Militar, tudo “continua como dantes no quartel de Abrantes”.
Esse longo preâmbulo para perguntar: a parcela bolsonarista da direita brasileira teria se tornado uma vivandeira internacional? Que Eduardo Bolsonaro flerta com os militares, não há dúvidas, afinal estamos todos aguardando “o cabo e o soldado que bastam para fechar o STF”, palavras dele. É uma vivandeira de outras instituições inclusive, com quadros da sua confiança nas polícias em geral, inclusive na Polícia Federal. Mas o que foi fazer nos Estados Unidos?
Equivoca-se quem acredita que o “02” fugiu para evitar a própria prisão. Ele foi pedir apoio ao “Grande Irmão do Norte”, cuja bandeira o bolsonarismo já jurou por muitas vezes, mas não se trata de uma fuga. Minha hipótese é que Eduardo Bolsonaro busca apoio para três objetivos: proteger o pai, esse sim ameaçado de prisão, a depender do jogo político (e não jurídico, sempre é bom lembrar) que corre no Brasil; se oferecer para ser treinado por Trump e pelas big techs, com o objetivo de retornar ao Brasil candidato à Presidência da República, no lugar do pai; articular uma bancada para a Câmara e Senado nas eleições de 2026 que repita a maioria trumpista nos EUA. Sua capacidade de articulação na extrema direita já está mais do que provada. Sua fidelidade ideológica, também, no que difere dos dois irmãos. Nas palavras dele mesmo, “um homem de convicção, e não de geleia”.
Mas seria ele uma vivandeira, ou apenas um vira-latas? O comportamento vira lata é comum entre as elites brasileiras. A expressão, inventada por Nelson Rodrigues, aplica-se àqueles e àquelas que admiram acriticamente o que vem do estrangeiro, principalmente dos EUA. Consideram tudo que é nacional inferior, mal-acabado, insuficiente diante das maravilhas da “terra prometida”. Que os Bolsonaros adoram os EUA, temos comprovações teóricas, simbólicas ou políticas. Entretanto, o 02 seria uma vivandeira?
Para ser uma vivandeira, o Bolsonaro Junior precisaria ter algo a oferecer ao combatente principal do tabuleiro, Trump, que ele desejasse, ou que fosse mais difícil conseguir por outros meios. Que o Itamaraty preferia os democratas, considerados “educados e respeitosos durante a última eleição de Lula”, o próprio chanceler Celso Amorin afirmou. Que o bolsonarismo preferia Trump, também não é novidade para ninguém. Mas e Trump?
Enquanto a maior parte da esquerda brasileira lamenta a eleição dos EUA, sobre a qual não temos nenhuma ingerência, o tempo segue correndo, e as eleições de 2026 se aproximando no Brasil. Temos poder de decisão sobre os nomes para candidatos à esquerda, e sobre o programa a debater com a população. Na direita, podemos torcer para que a construção de consensos em torno de um nome que substitua Jair Bolsonaro seja difícil, e antecipar o programa que trarão para as urnas. Ouso dizer que o lado de lá vai seguir colocando na mesa, agora com mais ênfase, a pauta da segurança pública e da militarização não só do Estado, mas das múltiplas esferas da vida social. Vamos preparar respostas e travar a batalha de ideias em torno disso? Bola para a frente!