Há uma *música do Chico Science e Nação Zumbi que tem o seguinte verso: “Computadores fazem arte, Artistas fazem dinheiro.” Desde que comecei a trabalhar com computadores, acabo pensando nessa letra e em seu significado de vez em quando. E ultimamente esse pensamento é ainda mais forte. Inclusive questionando uma IA sobre essa frase, acabei de descobrir que ela não é do Chico Science, mas sim de Harold Cohen, um pintor que se interessou por computadores e criou um dos primeiros softwares para a criação de pinturas e desenhos sem intervenção humana.
O debate mais acalorado é sobre um potencial plágio que esses modelos estariam cometendo contra a arte de Hayao Miyazaki, criador do Estúdio Ghibli. Por um lado, há os que defendem que todo conteúdo gerado por inteligência artificial é plágio, pois apenas imitaria o trabalho de um artista renomado e “cuspiria” cópias daquele estilo.
*Música: Computadores Fazem Arte – Chico Science & Nação Zumbi (1994)
Há motivos para esse ser o debate principal, porém tenho diversas dúvidas sobre se as imagens criadas pelo modelo de inteligência artificial configuram plágio, principalmente partindo do pressuposto de não sabermos como essas IAs processam informações e geram criações.
Existem diversas respostas prontas sobre como esse processamento ocorre, mas nenhuma delas é definitiva. O mais comum é ouvirmos que a IA apenas produz uma sequência de saída baseada no que já existe em sua base de conhecimento. Pensando nos LLMs (modelos de linguagem), é como se o cálculo feito pela IA fosse uma mera probabilidade sobre o encadeamento de palavras.
É uma explicação simplista — e que já se mostra equivocada. Atualmente, estamos entrando em uma era bizarra e complexa no campo da ciência e tecnologia.
A ciência surge como forma de compreendermos as raízes do funcionamento da natureza, enquanto a tecnologia usa essa compreensão para criar ferramentas. Por muito tempo, o processo foi linear: entendíamos algo e depois o aplicávamos.
Mas isso mudou. No campo científico, temos encontrado fenômenos naturais que observamos, mas não compreendemos em sua essência. Isso é comum na física quântica, que, por sua vez, é transformada em tecnologia — como na computação quântica —, entre outras ferramentas. Basicamente, sabemos que funciona, mas não compreendemos o “porquê” ou o processo por trás.
Algo similar ocorre no campo das Inteligências Artificiais Conectivas (ou cognitivas), grupo ao qual pertencem o aprendizado profundo, a IA Generativa e outros modelos baseados em probabilidade e dados. Vemos a IA funcionando, porém não compreendemos seu processo por completo. É algo análogo ao nosso conhecimento sobre o cérebro humano: percebemos a consciência, a memória, os sentimentos ou as razões, mas ainda não entendemos seu funcionamento (ao menos não como uma certeza científica).
E como funciona uma IA?
Na mesma semana em que o debate sobre IAs e a arte do Estúdio Ghibli ganhou destaque público, a Anthropic (empresa formada por uma dissidência da OpenAI) e o MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) publicaram um estudo que talvez seja o mais relevante dos últimos anos sobre inteligência artificial (https://www.technologyreview.com/2025/03/27/1113916/anthropic-can-now-track-the-bizarre-inner-workings-of-a-large-language-model ).
Nesse estudo, eles realizaram um processo tecnológico baseado em preceitos da biologia, semelhante a uma tomografia computadorizada, mas observando as áreas de processamento do Claude, o LLM da Anthropic. Analisaram todo o trajeto de processamento e as informações que o Claude usou para executar tarefas consideradas simples, como uma operação de adição matemática e a escrita de alguns versos de um poema.
O resultado foi bizarro e contraintuitivo, especialmente diante das teorias predominantes sobre o funcionamento de LLMs.
Na operação matemática, por exemplo, o Claude criou um método próprio para chegar ao resultado da soma. Ele não usou nenhuma das técnicas presentes em seu treinamento, mas algo completamente novo. Por si só, isso já é intrigante. Porém, ao questionar o próprio Claude sobre qual método ele utilizou, houve outra surpresa: o LLM respondeu que empregou uma das técnicas convencionais aprendidas em seus dados.
Estaria o Claude mentindo sobre seu processo? Ou teria algo similar a uma subconsciência, impedindo-o de compreender seu próprio método?
Outro experimento relevante foi com a escrita de poesia. A IA adotou um comportamento não linear, desenvolvendo rimas e métricas sem ordem definida: escolhia palavras antes de estruturar a frase, revisava decisões sobre versos já processados e reorganizava ideias. Não foi uma construção linear baseada em dados prévios, mas um processo complexo que culminou na poesia.
Aonde iremos parar?
Tenho muitas dúvidas sobre o tema desta semana — e certa apreensão sobre seus desdobramentos.
Grande parte do debate sobre inteligências artificiais se baseia em discursos sobre uma propensa superioridade humana. Na maior parte das vezes, esse debate se estrutura sobre temas que não entendemos perfeitamente ou mesmo entra em uma defesa de bases religiosas, como a falta de uma alma humana nas máquinas e em seus conteúdos produzidos.
Lembremos que o conceito de alma é religioso e político e já desencadeou diversas ações abomináveis no passado e no presente sobre aqueles considerados desprovidos dela.
Outro ponto de atenção diz respeito a uma negação da tecnologia e da ciência. Já existe, por exemplo, um movimento, ainda pequeno, de pessoas que se negam a tomar vacinas desenvolvidas por RNA, pois quase todo o seu processo é feito com o uso de inteligências artificiais. Isso é bastante preocupante.
O que a arte e a tecnologia tem em comum?
Mas, retomando o assunto da semana e o questionamento que dá título a este texto, podemos nos basear na pergunta mais clássica e que mais gera discussões na história: O que é arte?
Podemos nos prender ao paradigma de que a arte é uma construção da cultura humana? Mas aí eu poderia questionar: a tecnologia também não faz parte dessa construção?
Esse debate apenas gera mais dúvidas do que respostas. E, por mais que estejamos ansiosos por respostas, seja pelo medo e pela angústia ou seja pela curiosidade e animação que esses avanços tecnológicos nos causam, tentar encontrar essas respostas tem sido contraproducente e nos afasta do debate principal:
Quem controla a arte e a tecnologia?
Nessa pergunta, a ciência/tecnologia e a arte/cultura se encontram no mesmo patamar de resposta.
Existe produção artística e cultural ética dentro do capitalismo?
Existe produção científica e tecnológica ética dentro do capitalismo?
Existe consumo ético de qualquer coisa dentro do capitalismo?
No debate sobre o uso do ChatGPT para a criação de imagens parecidas com as do Studio Ghibli, temos, de um lado, a OpenAI, com um valor de mercado de 167 bilhões de dólares, e, do outro, um dos estúdios de animação mais premiados e valorizados da atualidade.
O Studio Ghibli foi vendido em 2023 e não pertence a Hayao Miyazaki, mas sim à Nippon Television Holdings, que o comprou por valores não anunciados publicamente. Atualmente, o valor de mercado da Nippon HT é de 688 bilhões de dólares, quase cinco vezes maior do que o valor da OpenAI.
Isso apenas exemplifica mais uma das muitas contradições do capitalismo quando levamos em consideração tudo o que consideramos humano ou não.
Ao meu ver, todo esse debate apenas mascara algo muito mais óbvio. Entendendo ou não, as inteligências artificiais têm todo um potencial de elevar a vida humana. Esse potencial é massacrado pelo seu uso dentro do capitalismo.
Assim como também o é o potencial da arte.
Logicamente existe, nesse momento da história, uma contradição entre a arte e a tecnologia. Mas é preciso se atentar, pois essa não é a contradição principal.