Em entrevista ao Brasil de Fato, a ex-deputada federal Manuela D’Ávila falou sobre o acesso e a permanência das mulheres no mercado de trabalho, os caminhos da esquerda nos embates contra a extrema direita, a superação ao capitalismo e o que a motiva a seguir na política. Ela é idealizadora do Festival Mulheres em Luta (Mel), que acontecerá entre os dias 11 e 13 de abril, em São Paulo.
“Eu venho de um processo de muita violência. Eu venho de eleições em que eu tive muito protagonismo e que a extrema direita se organizou muito a partir do sistema de desinformação e ódio em torno da minha liderança, e uma liderança que muitas vezes não encontra acolhimento nas nossas estruturas”, afirmou D’Ávila.
“Num mundo em que as crianças palestinas perdem tudo, as mães, as casas, partes dos corpos, a vida, não faltam razões para lutar. Eu senti e sinto muito medo, só que eu sempre encontrei razões mais fortes que o meu medo para seguir adiante. E acho que a realidade é a maior dessas razões”, disse Manuela, que foi candidata a vice-presidente da República na eleição de 2018, ao lado do atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
O festival Mel, que acontece neste fim de semana, contará com três dias de palestras, oficinas, rodas de conversas e intervenções artísticas com temas caros às mulheres, como racismo, acesso e permanência ao mercado de trabalho, crise climática, política partidária e democracia.
“A gente está fazendo esse esforço de aglutinar força política e social para uma agenda progressista para o Brasil em torno da luta das mulheres. Eu acho que a organização do Mel aqui em São Paulo com tantas mulheres é uma das provas de que é possível fazer política fora da vida parlamentar”, afirma Manuela.
“Existe muito espaço de luta, muito espaço de organização, muito espaço de debate sobre o Brasil. O Parlamento, as eleições são importantes, claro que são. Na atual conjuntura, eu nunca neguei isso. Disputei oito eleições. Não foram poucas, não. Neste momento, estou muito conectada com essa necessidade de acumulação política nossa na sociedade.”
D’Ávila foi deputada pelo Rio Grande do Sul entre 2007 e 2015, deputada estadual de 2015 a 2019 e candidata a vice-presidente da República na eleição de 2018. Ela também foi a vereadora mais jovem da história de Porto Alegre, eleita em 2004. A idealizadora do festival também já concorreu à prefeitura da capital gaúcha três vezes. Em outubro de 2024, deixou o PCdoB após 23 anos de filiação e, agora, segue sem partido.
Confira a entrevista na íntrega:
Brasil de Fato: Mulheres são a maioria da população no Brasil, responsáveis por chefiar quase a metade dos lares brasileiros. Por que não somos maioria na política?
Manuela D’Ávila: As razões são múltiplas. É impossível imaginar a mulher como uma categoria universal, e nenhuma resposta simples vai ser verdadeira. Mas eu acho que a gente precisa compreender genericamente que a maneira como a sociedade é estruturada, que não reconhece o trabalho reprodutivo e os cuidados como trabalho, penaliza sobretudo as mulheres.
Então, quando a gente fala em equidade salarial, eu voltaria uma casa, para entrada e permanência no mercado de trabalho. A gente fala, por exemplo, de mulheres da classe trabalhadora que não contam com suporte público para dar conta dos cuidados que são socialmente encarados como responsabilidade dela. Eu uso um exemplo: a maior parte das crianças brasileiras de zero a três anos não tem vaga em creche, e uma grande parte das mulheres trabalhadoras são mães. Então, o IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] nos mostra, por exemplo, que quase 50% das mulheres que são mães de crianças de zero a três não conseguem trabalho formal.
Quando a gente pensa a política e o espaço de liderança como um espaço de militância, como um espaço que acontece no tempo livre, as pessoas não são militantes profissionais. Quem tem mais tempo livre: o homem ou a mulher? Numa sociedade em que a mulher trabalha mais porque cozinha, porque limpa, porque lava roupa, porque organiza a semana, a responsabilidade da mulher com essa estrutura de cuidados, o não compartilhamento dessa responsabilidade com os seus companheiros e a não transformação e efetivação de políticas públicas de cuidados faz com que essas mulheres tenham menos tempo livre e portanto menos tempo para se dedicar a tudo aquilo que não é privado, a tudo aquilo que é público.
Isso eu estou falando só de aspectos muito objetivos que nem estão na subjetividade do machismo, do não reconhecimento da liderança, da violência política de gênero e de raça, de outros instrumentos que tiram da mulher essa possibilidade de ocupar a liderança.
No ano passado, você deixou o PCdoB, partido ao qual foi filiada por 25 anos, alegando descontentamento com os rumos da sigla. Existe espaço para uma política transformadora, e que pense nas mulheres como o centro dessa transformação, na política institucional hoje no Brasil?
É por isso que a gente está organizando o Mel, um espaço de articulação, de conexão, de ponte entre iniciativas comandadas por mulheres, iniciativas que colocam a agenda das mulheres no centro da reflexão sobre o projeto de país. A nossa pretensão é justamente imaginar uma agenda para o Brasil desenhada pelas mulheres.
Essa agenda não se relaciona só com aquilo que convencionaram dizer que são as pautas das mulheres, saúde sexual reprodutiva, violência doméstica. Mas o festival vai tratar de temas como economia, cuidados, crise energética, crise climática, emergência climática, o mundo do trabalho, jornada 6×1, a partir do olhar das mulheres, porque a gente entende que existe um conjunto muito grande de mulheres que ocupam esse espaço institucional e que é preciso que estejam articuladas para que tenham a força que o eleitorado já concede a elas.
A gente tem hoje uma grande parte das lideranças progressistas. São mulheres com votações avassaladoras, com votações muito grandes, muito relevantes e que não conseguem ainda furar as barreiras e fazer com que a pauta das mulheres seja vista como uma pauta universal. Há um certo clamor na esquerda pela chamada nova pauta universal. Agora, como pode ser universal se ignora a universalidade daquilo que nós reivindicamos?
A pauta das creches é específica ou universal? Para mim, é universal, porque tem relação com os cuidados das crianças, com o futuro do país, com a capacidade que essas crianças vão ter, com a proteção que elas vão receber, mas tem relação com uma classe trabalhadora que pode ajudar o Brasil a se desenvolver mais ou menos, tendo em vista que a classe não é só constituída por homens, mas também por mulheres.
O Festival Mel tem esse horizonte como objetivo? Como que isso vai se articular nesses dias?
O festival é um espaço de conexão. A gente não pretende substituir absolutamente nenhuma das organizações tradicionais das mulheres. As mulheres brasileiras se organizam nos seus partidos, nas suas organizações feministas, mais e mais em coletivos, em núcleos de pesquisa, em organizações não governamentais. Então, as mulheres se organizam em diversos espaços da sociedade e a gente quer que elas continuem se organizando. Nós não viemos para substituir nenhum desses espaços. Nós viemos para tentar conectar mais e mais espaços. Tanto que a maior parte da agenda do festival é feita a partir desse esforço de promoção de encontros entre organizações, entidades, coletivos e mandatos parlamentares que trabalham com determinadas causas.
Além disso, nós queremos que o nosso saldo seja o lançamento de algumas coalizões. E a gente vai lançar ao final do festival o desafio de organizarmos algo ainda maior em 2026 que consiga debater a agenda mínima das mulheres para o Brasil. A gente parte de alguns pressupostos. O primeiro deles é que é preciso articular setores amplos para enfrentar a extrema direita. Agora, nós queremos um povo organizado para fazer esse enfrentamento. E a parte que o Mel pretende aglutinar são justamente essas iniciativas das mulheres de luta.
As mulheres estão na luta contra a extrema direita há muito tempo no nosso país. Basta ver que em 2018, quando muitos achavam que o bolsonarismo era bobagem, foram as mulheres que foram na rua defender a Frente Ampla. Nós queremos aglutinar esse segmento numa agenda de transformação do país que nos ajude a acumular força necessária para isolar a extrema direita.
Por exemplo, existe espaço na agenda das mulheres para redução do Estado? Não existe, porque as mulheres da classe trabalhadora precisam do Estado, da escola pública, precisam da creche, precisam da escola de educação infantil. Então são debates que a gente quer fazer.
Você acha que a esquerda se afastou das mulheres no Brasil?
As mulheres vêm no Brasil e no mundo conferindo votações que permitem que a esquerda ou setores progressistas governem. Lula só é presidente porque o Nordeste, as mulheres e as pessoas negras votaram nele, senão ele não seria. Então as mulheres têm entregado muita esperança e muita expectativa nas forças progressistas para isolar a extrema direita. As mulheres persistem ao nosso lado.
Agora, nós assimilamos muito facilmente discursos superficiais sobre as mulheres e sobre o feminismo. “A esquerda se afastou das bases porque o feminismo está discutindo assuntos que são só das mulheres e não o sujeito universal”. Ora, eu não sei no que a gente organizar mulheres proíbe o movimento sindical de se organizar e de ter as suas pautas. Eu não entendo qual é o conflito que existe entre uma coisa e outra. Percebe? Então assim, eu acho que nós acabamos tendo respostas superficiais para a questão das mulheres, inclusive hostilizando aquilo que tem de mais vivo hoje no movimento social brasileiro, que são as mulheres feministas de esquerda.
Na prática, esse afastamento faz com que a gente não entenda que essas mulheres que vivem a realidade do povo trabalhador têm necessidades específicas. Por exemplo, a maior parte dos empreendedores não são os empreendedores, são as empreendedoras, assim como não são os evangélicos, são sobretudo as evangélicas.
Então, a precarização total do serviço público e a ausência de políticas do Estado para as mulheres faz com que a gente se desconecte da classe trabalhadora. Sempre que a gente fala que é preciso se conectar com as bases ou com a classe trabalhadora, a gente vem com uma ideia de que é preciso se reconectar com um certo tipo de movimento que em geral ignora a existência de mulheres. Quando na prática, para mim, o caminho aberto para gente se reconectar com comunidades, com a periferia, com territórios, justamente são as nossas mulheres.
São as nossas mulheres que seguram, que batem no peito segurando o estrago que a extrema direita produz. Foram as nossas mulheres que cuidaram dos pacientes acamados de covid dentro e fora dos hospitais. 85% dos trabalhadores do SUS não são os trabalhadores, são as trabalhadoras.
Então, para mim, pensar políticas para o povo brasileiro é necessariamente pensar política para as mulheres brasileiras. Quando falam para o povo brasileiro, parece que o artigo masculino na frente do povo faz imaginar que o sujeito universal é masculino, que é uma agenda só para homem. Como é essa agenda universal nossa que nunca levou em conta a creche? Que agenda universal é essa?
A gente vive em um cenário em que o poder econômico no país consegue fazer dominar uma taxa de juros alta e o corte de gastos em detrimento do desenvolvimento social. Há uma saída para o Brasil? Essa saída envolve diretamente a superação do capitalismo? Como fazer com que essa saída seja uma saída à esquerda, dado que o governo brasileiro não consegue se comunicar da melhor maneira e que o debate público é atravessado pelos interesses das big techs?
Bom, eu não consigo imaginar nenhuma saída para a humanidade que não seja a superação do capitalismo. Inclusive as bigtechs são uma das demonstrações mais cabais de que vários dos conceitos que eram tidos como superados, são atualíssimos, porque elas fazem valer os instrumentos de controle, de dominação, etc.
Ocorre que antes, eu acho que a gente tem que responder onde a gente acumula força para isso. Nós precisamos nos referenciar naqueles que souberam interpretar o nosso país nos ciclos anteriores, as diferenças fundamentais entre governos, partidos e movimentos sociais. Para a gente acumular força, para que o governo tenha uma agenda razoável mais perto dos trabalhadores, é preciso aglutinar e debater política com o nosso povo, que é um dos esforços que o Mel tem feito.
A gente percebeu que a demanda por isso é infinita. A gente teve que restringir participação por falta de estrutura, porque as pessoas querem debater as saídas para o nosso país, querem militar, querem se organizar. Não que eu não queira, é imprescindível o debate sobre a superação do capitalismo, mas na conjuntura atual, existe uma necessidade urgente de organização.
Quem nós somos nessa disputa? Nós temos força e nós queremos que as mulheres consigam ter uma agenda mínima para apresentar a sua agenda, para fazer essa disputa, para advogar a frente ampla, a unidade, mas também para dentro, nos marcos, nos contornos dessa frente ampla, defender a sua agenda.
Quando você fala em frente ampla, você está pensando na frente ampla da campanha do presidente Lula de 2022?
A gente fez um esforço imenso para incluir um centro democrático. Eu estou falando da ideia de que é preciso estar atento ao que significa a ameaça da extrema direita no Brasil e no mundo. E é preciso tirar desdobramentos práticos do nosso discurso.
Porque quando a gente fala de fascismo, que tais práticas são desumanizadoras, que a extrema direita é autoritária, quando a gente fala de tentativa de golpe de Estado, como aconteceu em 8 de janeiro no Brasil, qual é o desdobramento que a gente tira disso? Para mim é necessário termos um primeiro pacto, que é o pacto de unidade em defesa da democracia liberal brasileira, que foi o que nós fizemos e buscamos fazer em 2022. Então, quando eu falo em Frente Ampla, eu me refiro a todos os setores que reconhecem e reivindicam a necessidade de isolar a extrema direita e de construir um cordão sanitário em torno dela.
Quais são as suas perspectivas para as eleições do ano que vem pensando nessa frente ampla?
A gente está fazendo esse esforço de aglutinar força política e social para uma agenda progressista para o Brasil em torno da luta das mulheres. Se a tua pergunta é específica sobre mim, eu não tomei nenhuma decisão de concorrer ou não. Eu acho que a organização do Mel aqui em São Paulo com tantas mulheres é uma das provas de que é possível fazer política fora da vida parlamentar. Para mim, também é importante que as pessoas percebam isso.
Existe muito espaço de luta, muito espaço de organização, muito espaço de debate sobre o Brasil. O Parlamento, as eleições são importantes, claro que são. Na atual conjuntura, eu nunca neguei isso. Disputei oito eleições. Não foram poucas, não. Mas não tomei essa decisão ainda e estou neste momento muito conectada com essa necessidade de acumulação política nossa na sociedade.
O que te motiva a seguir na política?
Sabe o que eu estava andando esses dias na rua e um senhor me disse: “Olha, tu vai concorrer ou não vai?” Eu falei: “Ah, não sei”. Aí ele me falou: “Olha, esses caras te odeiam tanto dentro ou fora, não faz diferença”. Então, eu venho de um processo de muita violência. Eu venho de eleições em que eu tive muito protagonismo e que a extrema direita se organizou muito a partir do sistema de desinformação e ódio em torno da minha liderança, e uma liderança que muitas vezes não encontra acolhimento nas nossas estruturas.
Quando eu fiz 10% dos votos do Rio Grande do Sul em 2010, por exemplo, sendo uma mulher de 29 anos, que espaço tinha para a gente debater? E o que isso significava? Muito pouco. Mas os ataques já se organizavam e já me atingiam. Então eu só falo isso desse lugar de violência porque eu sei e vivo as consequências do ódio que a extrema direita tem das mulheres, sobretudo das mulheres progressistas, das mulheres de esquerda, das mulheres que ousam se levantar contra eles.
Agora eu tenho uma filha de 9 anos, que faz jiu-jítsu porque acha legal e porque eu quero que ela aprenda a se defender. E eu acho que isso é uma das razões que eu tenho para lutar. Um mundo em que eu preciso pensar que a minha filha tem que ter condições de se defender é um mundo em que muita coisa tem que ser mudada, um mundo em que muitas crianças, como a minha filha, estão vivendo situações dramáticas.
Para mim não existe nada mais profundamente tocante do que a gente olhar para as outras pessoas e se indignar com a desigualdade, de olhar para elas e de ver essas pessoas sujeitos de direito tal qual nós somos… Como quando eu explico para minha filha que ninguém nasceu brilhando no escuro, tendo efeito especial na luz neon. Todo mundo é igual, e mesmo assim a desigualdade incide e faz com que as pessoas vivam realidades tão dilacerantes.
Num mundo em que as crianças palestinas perdem tudo, as mães, as casas, partes dos corpos, a vida, não faltam razões para lutar. Eu senti e sinto muito medo, só que eu sempre encontrei razões mais fortes que o meu medo para seguir adiante. E acho que a realidade é a maior dessas razões.
Manuela, tem alguma indicação de livro ou filme para os nossos leitores?
A Boitempo lançou agora um livro sobre a [Aleksandra] Kollontai, que é um livro bem legal. Eu tive a honra de fazer a quarta capa dele. Acho que a Kollontai é sempre uma boa referência para as mulheres de esquerda e militantes.
Eu sei que já está bastante badalada a série Adolescência. Eu vi ela no final de semana de estreia, mas eu queria recomendar que as pessoas vissem a série se fazendo a pergunta que a policial faz: “Me incomoda que a gente busque a história desse menino. E dessa menina? Qual é a história dela?”. Eu acho que muita gente viu a série, se impactou, mas deixou de buscar a resposta do que está acontecendo com as meninas em função dos meninos se comportarem como o menino da Adolescência.