Inicialmente poupada da lista de países atingidos pelas tarifas de Donald Trump, a Rússia está em alerta com a guerra comercial promovida pelos EUA. Por outro lado, a turbulência no mercado pode gerar oportunidades geopolíticas para Moscou e seus aliados.
Ao anunciar a sua nova política tarifária, o presidente dos EUA, Donald Trump, poupou a Rússia, Belarus, Cuba e Coreia do Norte. Ele alegou que estes países já sofrem muitas sanções, fazendo com que o comércio bilateral destes países com Washington seja irrisório.
Logo se especulou que o motivo real seria o momento de maior aproximação entre Trump e Putin, tendo as negociações sobre a guerra da Ucrânia como pano de fundo, sobretudo por algumas incoerências nos argumentos do presidente estadunidense.
De fato, após o início da guerra da Ucrânia, o volume comercial entre Washington e Moscou diminuiu em mais de 80%, mas os EUA ainda possuem um déficit comercial de cerca de US$ 2,5 bilhões (cerca de R$ 14,5 bi) com a Rússia, número que chega a ser maior do que alguns outros países que também recebem pesadas sanções dos EUA e que Trump também inicialmente incluiu no ‘tarifaço’.
Posteriormente, Trump recuou e declarou uma pausa de 90 dias nas novas tarifas recíprocas para a maioria dos países, com a exceção da China, contra quem os EUA escalaram ainda mais a tensão comercial após as medidas de retaliação de Pequim. Na última sexta-feira (11), a China elevou suas tarifas sobre importações estadunidenses para 125%, um dia após Donald Trump ter aumentado a tarifa mínima sobre as importações da China para 145%.
Mas como a tensão EUA-China afeta a Rússia?
Independente de estar fora da lista de tarifas, a turbulência no mercado mundial não passou despercebida pela Rússia, que manifestou sérias preocupações com o efeito que as medidas podem ter em sua economia. A chefe do Banco Central da Rússia, Elvira Nabiullina, afirmou que as “mudanças tectônicas no comércio global estão se desenrolando diante de nossos olhos, e ainda é muito difícil avaliar para onde elas levarão a economia mundial e como afetarão a Rússia”. “Este é um novo risco significativo que devemos levar em conta”, disse.
Um dos riscos diz respeito ao fato da guerra tarifária de Trump focar justamente no principal parceiro de Moscou. Em meio às sanções do Ocidente contra Moscou, a China se tornou o principal parceiro comercial e estratégico da Rússia. O volume de comércio entre os dois países em 2024 atingiu um novo recorde de US$ 244,8 bilhões (quase R$ 1,5 tri). A porta-voz do Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, condenou as medidas de Trump.
“Em relação à chamada guerra tarifária entre os Estados Unidos e a China, gostaríamos de salientar que quaisquer choques na economia mundial, que ameacem desacelerar suas taxas de crescimento e o declínio geral do consumo, têm uma projeção negativa sobre muitos processos globais. A situação desperta particular preocupação quando envolve as duas maiores economias do mundo”, afirmou.
De acordo com a diplomata, a última decisão tarifária da Casa Branca “vai contra as regras fundamentais da OMC” e “demonstra que Washington não se considera mais vinculado às normas do direito comercial internacional”.
Para a Rússia, o primeiro sinal de alerta econômico da guerra tarifária dos EUA é o preço do petróleo, que vem sofrendo forte queda nos últimos dias, atingindo o menor patamar dos últimos anos. As exportações de petróleo são fundamentais para a economia russa, e a alta do preço do barril nos últimos anos ajudou a manter a estabilidade econômica no país, mesmo com todas as sanções do Ocidente por conta da guerra da Ucrânia.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista-chefe do Fundo Nacional de Segurança Energética da Rússia, Igor Ushkov, afirmou que esse cenário pode causar um déficit orçamentário maior do que o planejado.
“A aplicação de tarifas contra outros países por parte dos EUA é negativa para a Rússia. Nós vemos que o preço do petróleo caiu, o que para nós é um efeito indireto. Presume-se que a adoção pode desacelerar o comércio entre vários países, a produção de mercadorias vai diminuir e o fornecimento vai diminuir. E o uso de combustíveis para o fornecimento também diminuirá, o que leva a um excedente no mercado, por isso os preços caem”, explica.
O analista observa, no momento de pico, o petróleo chegou a cair para cerca de US$ 50 o barril, ao mesmo tempo que o orçamento da Rússia para 2025 está calculado para uma faixa de US$ 69-67 o barril, e para uma taxa de câmbio de 96 rublos frente ao dólar. “Então na prática, nós deveríamos vender o nosso petróleo por cerca de 6.700 rublos o barril, e vendemos a cerca de 5.000 por barril. Isso quer dizer que a Rússia terá um déficit orçamentário maior do que o planejado”, completa.
Relação com as negociações sobre Ucrânia
O motivo pelo qual Donald Trump não incluiu a Rússia na lista de tarifas vai além da alegação de baixo volume comercial. Uma das prioridades da política externa dos EUA é a resolução da guerra da Ucrânia, e nesse sentido, para Trump é muito importante evitar um desgaste antes da hora, aumentando as chances de um acordo de paz no futuro.
Ou seja, aplicar tarifas adicionais contra a Rússia neste momento poderia criar um atrito com Moscou, queimando uma cartada que a Casa Branca ainda pode usar quando as negociações diretas com Moscou sobre a guerra entrarem em um momento mais difícil.
Então nada exclui a possibilidade dos EUA ainda incluírem a Rússia em mais sanções, caso Vladimir Putin não aceite os termos dos EUA e da Ucrânia sobre um eventual cessar-fogo. Afinal, Trump já chegou a ameaçar a Rússia com mais sanções sobre o petróleo russo na última vez em que Vladimir Putin impôs condições para a trégua marítima entre Kiev e Moscou.
Aposta na aproximação com a China
Por outro lado, para o analista Igor Ushkov, a guerra comercial de Trump também pode ter um efeito geopolítico inverso para os EUA, fortalecendo a aliança entre países do Sul Global minando as pretensões hegemônicas estadunidenses.
De acordo com ele, “os gestos radicais e excêntricos de Donald Trump, sua anunciada guerra comercial contra todo o mundo, mesmo que tenha recuado depois, de qualquer forma, é sinal de que os EUA vão se tornando um parceiro cada vez mais não confiável”.
“Se antes, a gente via dos EUA uma ameaça militar, ameaça política, agora nós vemos que os EUA estão demonstrando uma guerra econômica contra todo o mundo, independente se aliado ou não. Tudo isso enfraquece a autoridade dos EUA e cada vez mais países entendem que é preciso ter um sistema econômico alternativo”, afirma.
Autoridades russas também começam a manifestar esperança de a tensão comercial entre EUA e China possa abrir uma janela de oportunidade para a economia chinesa buscar novas áreas sustentáveis de cooperação e incrementar a cooperação com o mercado russo.
Foi o que expressou o vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Andrei Rudenko, apontando que, no contexto das guerras comerciais no mundo, a Rússia e a China podem estabelecer um novo recorde de volume comercial, e suas relações podem se tornar ainda mais fortes.
Igor Ushkov aponta também que cada vez mais países ao redor do mundo começam a perceber que não é mais confiável ter uma arquitetura financeira mundial pautada na hegemonia do dólar, e que as moedas nacionais deve ser utilizadas para comércios internacional
“É preciso ter um sistema reserva de transferências bancárias para além do Swfit, que é preciso ter sistemas de pagamento de cartões que não sejam só Visa e Mastercard, mas ter alguma outra alternativa. Por isso, a situação atual acaba permitindo uma conjuntura para um mundo multipolar tanto na política quanto na economia”, completa.
Nesse contexto, o analista também acredita em um maior estreitamento das relações entre Moscou e Pequim. De acordo com ele, a “China entende que a pressão contra ela vai crescer de qualquer forma e os EUA os entendem como o único adversário global, e pressionam a China de todas as formas”.
“Por isso, a China deve diversificar a sua economia e a sua política externa, e interagir com a Rússia, por exemplo, de uma maneira mais corajosa. E a Rússia pode oferecer um fornecimento seguro de recursos energéticos, porque a concorrência e a confrontação com os EUA, cedo ou tarde, vão levar aos EUA tentarem minar os recursos chineses e buscar bloquear tudo o que lhe chega do Sul, do Oriente Médio, da África.”
“E aqui a Rússia consegue prover o seu fornecimento alternativo pelo norte, é um percurso muito mais confiável, são caminhos diretos pelo norte, ou por um trânsito pelo Cazaquistão, ou Mongólia. Por isso, tal confrontação dos EUA deve empurrar a China para a busca de uma relação econômica com riscos políticos mínimos”, completa.