O lance mais ousado desta semana que antecede a Páscoa aconteceu naquela encenação do lava-pés, no hospital DF Star, em Brasília, na última terça-feira (15).
Naquele dia, Michelle, super sóbria, vestindo um pretinho-luto nunca visto em suas performances, de cara limpa e em momento de serena humildade, lavou com delicadeza os pés daquele Jair que todos conhecemos. Autêntico em relação a momentos singelos, com as pernas bem abertas, com o ar de vítima que ostenta sempre que sente medo, com aquele olhar enuviado de peixe morto que lhe é próprio e pensando no futuro, ali estava o mito. Olhando para a parede.

Muito distante das reproduções de fé verdadeiramente religiosas, a cena correspondeu àquilo que merecemos. Uma tradução mequetrefe de passagem bíblica importante, relativa à quarta-feira da semana que antecedeu a crucificação.
Numa das versões daquela quarta-feira, em casa de Simão, o leproso, Maria de Betânia, irmã de Lázaro, o ressuscitado (não confundir com Madalena, a “pecadora”), teria lavado com lágrimas e com um perfume caríssimo (“o equivalente a um ano de trabalho”), e depois, teria secado nos próprios cabelos, os pés do Messias.
Michelle, mais identificada com a outra, não chegou a esse ponto.
Mas fez como Judas, há quase 2.000 anos, e saltou na frente, se cacifando durante a quaresma. Passou a liderar a fila das disputas por um espólio que até há pouco lhe seria inatingível.
Fez bem? Veremos.
De momento, considerando os envolvidos, parece que sim.
Afinal, se o inelegível não tem substituto capaz de enfrentar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por que não ela? Além disso, neste país onde as mitologias de fundo religioso se misturam ao fascismo mentiroso, depois daquela cirurgia de 12 horas, e conhecendo como ninguém o histórico de atleta do seu querido conge, aquela denguice em ritmo bíblico lhe ocorreu em boa hora. E há de ter o seu valor. Ela bem sabe o que pode esperar dos enteados e quão pouco terá a receber, por direito, em termos materiais, no regime de casamento que lhe garantiu lugar naquela família.
Avaliou o cenário e partiu para o imaterial. Deu sorte. Ofuscou, com aquilo, a aprovação de regime de urgência para o PL 2858, através do qual Sóstenes Cavalcante (líder do PL-RJ), e outros 261 parlamentares comprometidos com o golpe tratam de livrar a cara de Bolsonaro e demais envolvidos em crimes sem precedentes em nossa história .
Nesta semana Michelle roubou a cena daqueles que, correndo o risco de se ver comprometidos pelo indiciamento de seus patrocinadores, parentes e associados, lutam para garantir impunidade a todos envolvidos com a idealização, a preparação, o financiamento e a execução da tentativa de golpe.
Na próxima semana tudo pode mudar. Basta uma virada de vento para que todos os criminosos empenhados em desmontar a democracia resultem devedores daqueles que pretendem o Brasil perdoe e esqueça tudo que ocorreu desde o dia 30/10/22 (data da eleição do presidente Lula) até o momento em que – se depender deles – passará a vigorar esta absurda “lei da anistia” .
Os deputados da minoria, que se movimentam contra aquela maré, estão alertando para a incongruência de um perdão antecipatório ao julgamento da Justiça. Também destacam a existência de outros 2.245 os projetos tramitando em regime de urgência na Câmara Federal. Se todos eles aguardam, há tempos, decisão da presidência da casa, por que a pressa com esse?
Hugo Motta (Republicanos-PB) sabe a resposta. Tendo sofrido pressões dos dois lados, ele já definiu sua posição. Será “neutro”, segundo ele, em respeito à vontade do Colégio de Líderes, onde PSD, MDB, PRD, PP, PSDB, Cidadania, União Brasil, Novo, Avante, Podemos e Republicanos, já se posicionaram em favor da anistia (contra a posição constitucionalista do PT, PDT, PSB, PCdoB, Psol e PV). Mas como 70% da população também é favorável à punição dos golpistas, nos resta esperar.
Daí a importância do gesto da Michelle, que correndo por fora também eclipsou o sacrifício de Glauber Braga (Psol-RJ).
Em greve de fome desde o dia 9 de abril, quando Conselho de Ética e Decoro Parlamentar votou pela cassação do seu mandato, Glauber definha há 8 dias em um colchão colocado no plenário 5 da Cãmara. Essa foi a forma adotada por aquele deputado sério e combativo, para que não esqueçamos seus motivos, que são nossos, de enfrentamento permanente à corrupção, aos canalhas, ao fascismo.
Se ocorrer o fato inédito de sua cassação, por vingança de alguém inescrupulosamente hábil no repasse de verbas, se estabelecerá na Câmara Federal um novo padrão de comportamento parlamentar. Uma nova definição de Ética. Um parâmetro que, nos rebaixando, desmantelará a democracia.
Talvez seja isso que merecemos vivenciar: a normalização da imoralidade, anunciando um período onde nossas famílias se arrastarão até que mentir volte a ser errado neste país.
A ausência de preocupações dos brasileiros, em relação aos fatos aqui comentados, e os 56.941.556 votos contabilizados nesta mesma semana, durante o “paredão” BBB lobotomizante da Globo que fritou a “dona Delma”(15 de abril), se somam a outras evidências de que vamos deixar, para a próxima geração, o pior. O que ninguém merece.
Quem sabe até mesmo, e de novo, outras rodadas daqueles cálices de vinho tinto de sangue…
Em tempo: Glauber Braga encerra greve de fome após acordo com Hugo Motta
Cálice, de Chico e Gil. No show Tempo Rei, de Gilberto Gil, em São Paulo (SP), no último sábado (12).
Uma sugestão de leitura: Vozes negras no serviço público.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.