Desde que Donald Trump voltou à Casa Branca, Washington não para de ameaçar o Panamá com sua intenção de “retomar o Canal”. Nas últimas semanas, essas pressões saíram do campo da retórica e viraram medidas concretas, marcando um momento crucial para a soberania panamenha.
No começo de fevereiro, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, escolheu o Panamá como primeiro destino de seu giro à América Central e ao Caribe — um gesto sem precedentes, já que nunca um chefe da diplomacia dos EUA iniciou sua agenda pela região. Mas, longe de buscar reaproximação, sua visita escalou o confronto. Rubio deixou claro que as ameaças de Trump eram sérias e que Washington não toleraria nenhuma autonomia do governo panamenho.
Depois da visita, o Departamento de Estado, no seu habitual tom coercitivo, emitiu comunicado: “O secretário Rubio deixou claro que esse status quo é inaceitável”, acrescentando que, sem uma “mudança imediata”, os EUA tomariam as “medidas necessárias”. A resposta do Panamá foi rápida: o presidente Mulino anunciou a saída da Rota da Seda e o cancelamento dos acordos com a China.
No entanto, os gestos de José Raúl Mulino de alinhamento incondicional com Washington não foram suficientes para abrandar as exigências da Casa Branca.
Na noite do dia 10 de abril, o governo Mulino divulgou memorando de entendimento assinado entre o Panamá e os EUA, autorizando que “pessoal dos EUA possa ficar temporariamente no território da República do Panamá”, além de prever exercícios militares e outras formas não especificadas de “cooperação”.
O acordo prevê o envio de tropas e contratados militares dos EUA (um eufemismo para mercenários) para o território panamenho por três anos. Ele permite a presença militar dos EUA em aeroportos e em várias instalações de defesa nacional. A assinatura do acordo aconteceu durante visita do secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth — a primeira desse tipo em décadas —, que chegou ao país no dia 8 de abril sob o pretexto de participar de uma conferência de segurança.
Enquanto esteve no Panamá, Hegseth insistiu que os EUA estão comprometidos em “recuperar o Canal da influência chinesa” e fortalecer a cooperação militar com o país. Mesmo admitindo que a China não opera o Canal — negando assim as alegações anteriores de Trump —, ele afirmou que a presença chinesa representaria um “risco de espionagem” na região.
O acordo foi bem recebido por Trump, que, em coletiva de imprensa ao lado de Hegseth, declarou: “Deslocamos muitas tropas para o Panamá e ocupamos algumas áreas que ainda não tínhamos, mas agora temos.”
Fantasmas da invasão militar de 1989
Diante do novo contingente militar dos EUA no Panamá, organizações sociais e sindicatos convocaram uma greve geral que começa na quarta-feira, 23 de abril. Os professores de todo o país serão os primeiros a paralisar as atividades no mesmo dia, enquanto, na quinta-feira, várias organizações farão uma marcha nacional, seguida de uma greve geral de sindicatos como os da construção civil, trabalhadores rurais e movimentos estudantis.
Os acordos assinados entre o governo panamenho e os Estados Unidos violam claramente o Tratado de Neutralidade e a Constituição panamenha, além de significarem uma entrega da soberania nacional a Washington. Essa é a avaliação de Abdiel Rodríguez Reyes, ativista e professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Panamá, que analisou a situação do país em entrevista ao Brasil de Fato.
“As relações entre o Panamá e os Estados Unidos são regidas pelo Tratado de Neutralidade, que é perpétuo. Temos que entender que a única garantia para proteger o Canal do Panamá é justamente essa neutralidade”, explica Reyes. “Somos um país neutro. O artigo 5º do tratado estabelece que não pode haver presença militar dos EUA após a devolução do canal em 1999. Portanto, só o Panamá pode garantir sua segurança.”
Em 1977, após décadas de luta do povo panamenho pela soberania sobre o canal, o líder Omar Torrijos (1968-1981) e o presidente dos EUA Jimmy Carter (1977-1981) assinaram os Tratados Torrijos-Carter. Esses acordos garantiram que o Panamá assumiria o controle total do canal a partir do ano 2000, pondo fim ao domínio que os EUA exerceram durante o século 20. Além disso, ficou estabelecido que a hidrovia deveria permanecer neutra em tempos de guerra e paz, proibindo a instalação de bases militares estrangeiras nas áreas vizinhas.
Uma nova ofensiva imperialista
Reyes denuncia que “desde 2000, o Panamá assinou cerca de 20 acordos com os EUA porque, na prática, os militares norte-americanos nunca saíram de verdade.”
No entanto, ele acredita que a situação atual é diferente, tanto pelo tamanho do contingente militar quanto pelo contexto político. “Há uma queixa: lembremos que uma das primeiras declarações de Trump ao assumir foi que ele queria ‘retomar o canal’. Essas foram suas palavras exatas”, diz Reyes.
O Panamá é um país sem exército desde que suas forças de defesa foram abolidas após a invasão dos EUA em 1989. “Por isso, essa presença militar equivale a uma nova ocupação”, alerta.
“Com essa ameaça, vemos o objetivo de recuperar o canal se concretizando. Não há transparência: não sabemos quantos soldados estão lá. Segundo comunicados da embaixada dos EUA, são 1.000 fuzileiros navais, quatro aviões de guerra e barcos com mísseis na costa.”
Embora o memorando não mencione explicitamente bases militares, o Departamento de Defesa dos EUA fala em criar “centros de treinamento militar”. “Como entender esses centros, senão como bases secretas? Isso é uma afronta à memória dos nossos mártires”, diz Reyes.
“Um único território, uma única bandeira”
Com 82 quilômetros de extensão, o Canal do Panamá recebe entre 13 mil e 14 mil navios por ano e gera cerca de 24% da receita do Estado. É uma rota vital para o comércio global: de 3% a 6% do tráfego marítimo mundial e 40% dos contêineres dos EUA passam por ele.
Reyes destaca que a tensão com o imperialismo dos EUA não é nova: “Nossa história foi marcada por uma relação desigual, baseada na arrogância e no supremacismo dos EUA. Hoje, nossos governantes agem de forma submissa, entregando o país aos interesses imperialistas.”
“Há insatisfação porque os benefícios do canal não chegam à maioria”, afirma. Ele diz que é urgente discutir o que o controle do canal realmente significa, não só geopoliticamente, mas também internamente.
“Precisamos defender nossa soberania contra potências estrangeiras e, ao mesmo tempo, combater a corrupção local. Nesses 25 anos, só uma elite se beneficiou do canal, enquanto o povo ainda espera por justiça. Nossa luta é contra a arrogância dos EUA, contra a submissão de Mulino, mas também pelo controle efetivo do canal pelo povo panamenho.”