Brasília completa mais um aniversário. Como em todos os anos, o calendário oficial se volta aos monumentos, às avenidas largas e à imagem de uma cidade idealizada. Mas há uma Brasília que pulsa à margem dessa narrativa oficial: a Brasília do Setor Comercial Sul, das ocupações culturais, da gente que trabalha, canta, vende, improvisa, cria.
Nesse território concreto – e simbólico – somos convocados a refletir: quem tem direito ao centro da cidade? E mais profundamente: o que é o centro?
Henri Lefebvre nos provoca a pensar o direito à cidade como algo que vai além do acesso físico: é o direito de transformar a cidade e ser transformado por ela. Já Milton Santos nos alerta que o centro não é apenas um lugar geográfico, mas uma centralidade construída por relações sociais, fluxos econômicos e simbólicos. Sob essa ótica, o Setor Comercial Sul — considerado parte do “centro” de Brasília — se torna um palco emblemático onde as contradições urbanas se manifestam em sua forma mais aguda: a tensão entre projeto e vivência, entre controle e espontaneidade, entre exclusão e resistência.
Lúcio Costa, ao desenhar Brasília, previu que a rodoviária seria o ponto de encontro da cidade, seu coração vivo, o lugar onde ricos e pobres se cruzariam todos os dias. Mas o sonho modernista de integração esbarrou na realidade concreta da segregação urbana.
A rodoviária é, sim, um ponto de encontro — mas não nos moldes harmônicos imaginados pelo arquiteto. Hoje, ela é passagem e permanência para quem vem das periferias e encontra no centro não apenas trabalho, mas também possibilidades de existência e afirmação.
Como nos diz o Emicida, “a periferia é o centro.” É dela que vem a cultura que reinventa, a arte que cura, o grito que incomoda e o corpo que ocupa. Quando a periferia chega ao centro – com seus tambores, suas cores, suas ausências e presenças –, ela não está apenas reivindicando espaço: ela está reconstruindo os sentidos da cidade.
Zona de criação
O Setor Comercial Sul é um exemplo disso. Ali, onde a especulação imobiliária tentou impor o vazio, surgem feiras, rodas de conversa, apresentações artísticas, mutirões, oficinas, novas economias. O que seria uma “zona de transição” se torna zona de criação. Ao ocupar o centro, os trabalhadores, artistas e coletivos não apenas sobrevivem — eles reexistem, redesenham o urbano, reencantam o cotidiano.
Reafirmar o centro como lugar de todos — e não apenas de alguns — é tarefa política.
É reconhecer que o desenvolvimento sustentável passa pelo reconhecimento das culturas vivas, pela criatividade popular e pela valorização de quem constrói a cidade dia após dia. O verdadeiro centro de Brasília não está nos palácios nem nos gabinetes. Está no corpo coletivo que se movimenta, cria, resiste e transforma.
Neste aniversário da capital, que o Setor Comercial Sul continue sendo esse território de disputa e imaginação. Que a cultura siga sendo a ferramenta de reconstrução do comum. E que possamos, como cidade, escutar quem há muito tempo vem dizendo: o centro é nosso.
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*Rafael Reis é coordenador do Instituto No Setor.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato – DF.