Ouça a Rádio BdF

Quase virei saudade em Campos dos Goytacazes

Se a cidade tivesse adotado o conceito sueco, nem eu, nem o motorista de ônibus teríamos passado aquele susto

Quando cheguei à segunda cidade mais rica do Rio de Janeiro e vi aquela quantidade de ciclofaixas, imaginei que ali, sim, era um local que respeitava o ciclista trabalhador. Algumas ainda reluzentes de novas, outras nem tanto, as vias estão estendidas por algumas das principais ruas e avenidas de Campos dos Goytacazes, local onde a dinastia Garotinho ainda impera, com o prefeito reeleito carregando o nome dos famosos pai e mãe, governador e governadora do estado, mais famosos, no entanto, por aparecerem nos noticiários criminais. Mas isso é outra história. 

O fato é que nessa cidade de mais ou menos 450 mil habitantes, muito plana, quente e dividida não só pela política, mas também pelo desprezado rio Paraíba do Sul, as bicicletas são o principal meio de transporte da classe trabalhadora. A última pesquisa Perfil do Ciclista Brasileiro 2024 da Transporte Ativo mostrou dados que poderiam ser mais alvissareiros para nossa causa ciclística caso a administração municipal pensasse a infraestrutura com a cabeça de ciclista. 

Das mil e duas pessoas entrevistadas, 93,5% afirmaram pedalar há mais de cinco anos; 80% para ir trabalhar; 45% são mulheres; 60% usa bicicleta seis dias por semana. Dos motivos que as levam a pedalar: é mais prático para 51%; mais barato para 21% e mais saudável para 25%. Em termos de renda, 33% recebem até um salário mínimo mensal, 48% recebem entre um e três e 17,5% entre dois e cinco. No que tange à raça, pessoas pretas e pardas correspondem a 58% do total. 

Os 10 dias em que fiquei por lá me não foram suficientes para entender toda a dinâmica de quem pedala, mas deram uma boa perspectiva. É notória a quantidade de mulheres pedalando, mas são elas que mais usam bicicletas elétricas, dessas chinesas que têm pedal mas também têm acelerador. O fato da maioria dos pesquisados receber até 3 salários mínimos vai de encontro à minha percepção de não ter visto nenhuma bicicleta de marca famosa, só wendys, houstons e imitações de barra forte. Também vi muita gente freando com os pés, já que a inexistência de ladeiras dá essa brecha para economizar nas pastilhas e colocar mais comida na mesa.  

Eu rodei bastante com minha Dahon dobrável. Cruzei Campos de ponta a ponta pela famosa Ciclovia Patesko, inaugurada pelo Garotinho pai em 1990. Cruzei a Ponte de ferro Barcelos Martins, que leva para os bairros populares. Subi e desci a ciclofaixa Barão de Miracema no final de expediente com dezenas de trabalhadores e trabalhadoras. Levei fino de um motorista ignorante numa avenida em que não têm segregação. Conheci um morador que pedala uma berlineta Caloi de 1980 que me convidou para conhecer sua coleção de 30 bicicletas. 

Mas foi num giro digestivo pós-jantar nos arredores da minha hospedagem que quase virei saudade. Era uma noite quente e quis dar mais uma volta pelo centro. Resolvi pegar a ciclofaixa Quinze de Novembro, a avenida que margeia o rio. Ao chegar debaixo do viaduto Leonel Brizola, fiquei na dúvida se entrava à direita ou seguia em frente, o que me fez ficar confuso quanto à sinalização de trânsito. Entrei à direita, mas logo peguei o retorno ainda debaixo do viaduto e decidi voltar pela avenida, sem saber que lá do outro lado, um ônibus municipal vinha numa velocidade considerável e que ia cruzar a pista na minha direção.

Ainda ecoa na minha cabeça o grito do motorista lá de dentro do ônibus, “ai meu deus”. Não deu tempo nem dele buzinar. Eu parei ali mesmo e ele passou na minha frente. Não me xingou, eu não xinguei, ele foi para um lado e eu, de cabeça baixa, me sentindo um inútil, pedindo desculpas. Dali voltei direto para o apartamento. 

Eu sempre vou insistir em reforçar o conceito Visão Zero, criado pela Suécia e adotado pela Organização Mundial da Saúde para reduzir sinistros de trânsito: nenhuma morte ou lesão é aceitável. E a culpa pelas mortes e lesões normalmente recaem sobre os usuários, principalmente sobre a vítima. Mas ela precisa ser atribuída também para quem legisla, planeja e executa a sinalização. Enquanto essa turma não figurar no rol dos culpados e terem punições à altura, os índices dificilmente vão cair. Se as mortes de trânsito não caírem no colo dos chefes dos departamentos de trânsito, o problema nunca será resolvido.

E debaixo daquele viaduto onde é notório o conflito de carros, motos e ônibus com os pedestres e ciclistas, a sinalização viária é uma catástrofe. Mesmo de dia, é tudo mal iluminado e mal direcionado. As faixas de pedestre estão apagadas, não há semáforo para ciclista, deixando-os à mercê da própria sorte. Não é possível que um visitante morra atropelado por um ônibus por falta de um mísero sinal de trânsito ou um pouco de tinta no asfalto. Afinal, não basta esticar um monte de ciclofaixas se elas te induzem ao erro. 

Se a cidade tivesse adotado o conceito sueco, nem eu, nem o trabalhador da companhia de ônibus teríamos passado aquele susto. E dá para entender o motivo. A sinalização foi feita para quem já conhece a cidade. Eu notei que quase ninguém usa aquela ciclofaixa no sentido BR 101, só ao contrário; e pela manhã. À tarde, os trabalhadores saem do centro e já vão direto pela avenida, para pegar a ponte de ferro e cruzar o rio. Pela lógica da cidade, o errado era eu, o visitante. A culpa seria minha. Que lástima. 

Veja mais