A greve dos apps, sobre a qual falei no artigo anterior, reavivou a discussão sobre a importância da identificação coletiva, mas também pôs em evidência a falsa oposição entre “ser CLT” ou ter autonomia.
Assistindo a um podcast supostamente crítico ao capitalismo, que – ao contrário da grande mídia – deu a devida importância à paralisação dos motociclistas, fui surpreendida com a entrevista de um trabalhador. Segundo ele, a greve não deve ter por objetivo o reconhecimento de direitos trabalhistas para a categoria. Afinal, ele quer seguir podendo parar de trabalhar quando precisa levar o filho ao médico e não quer receber apenas o salário mínimo.
Após a rápida entrevista, a âncora do programa comenta que efetivamente essas pessoas preferem trabalhar “com autonomia”. Embora eu já tenha escrito sobre isso também, quero dialogar uma vez mais com a fala desse trabalhador, por sua importância. Afinal, é esse o tema que perpassa a tese jurídica divulgada no site do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e secundada pelo Superior Tribunal Federal (STF), tema 1389, referida na polêmica decisão suspendendo todos os processos que abordam o tema da pejotização no país. Empreendedora de si é exatamente a pessoa que, convencida pela intensidade da propaganda sedutora do capital, acredita ser proprietária da mercadoria força de trabalho, alguém em condição de paridade com a tomadora de seu trabalho. Esse convencimento, porém, não ocorre por desconhecimento ou ignorância. São séculos de uma ideologia da (falsa) igualdade contratual.
Em praticamente todas as movimentações coletivas da classe trabalhadora, as greves que resultaram direitos trabalhistas foram feitas para aumentar a remuneração e reduzir a quantidade, a intensidade e o tempo de trabalho. O direito do trabalho foi o discurso historicamente construído por e para pessoas trabalhadoras que, de algum modo, acreditavam estar vendendo uma mercadoria, mas sentiam a necessidade de impor limites à “ânsia devoradora do capital”. Não “eram CLT”. A Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) foi a resposta do Estado às paralisações organizados no início do século XX.
Ao referir que quer autonomia para poder levar o filho ao médico, o que esse trabalhador está dizendo é que não é suportável a condição de trabalho, pela qual o tempo de vida é colonizado quase completamente pelo tempo de trabalho. Foi exatamente isso o que mobilizou a classe trabalhadora e impôs a construção de normas de proteção social.
O empregado tem direito à folga para a realização de tarefas que sejam essenciais à manutenção da sua saúde e da saúde dos que dele dependam. É a CLT que garante isso. O problema é que, na prática, a possibilidade de estabelecer banco de horas e a ausência de controle efetivo da limitação do tempo de trabalho faz com que esse direito não seja respeitado. Receber pelo descanso (semanal, anual, intervalar) é uma conquista trabalhista. Ter salário garantido também. Quem trabalha sem vínculo deixa de receber no instante em que para de trabalhar. Portanto, tem menos condições para cuidar de seus afetos. A jornada de trabalho é justamente a conquista desse direito de ter a folga mantendo o salário.
“Ser CLT”, portanto, é estar no campo das relações sociais que conquistaram a proteção representada pela legislação trabalhista. Está nítido, porém, que essa proteção não vem sendo garantida na realidade das relações de trabalho, pois do contrário dificilmente haveria tanta adesão ao falso discurso do empreendedor de si.
Na materialidade da vida, os direitos trabalhistas viraram um simulacro, um discurso vazio, um engodo. Quem vive do trabalho compreende que “ser CLT” hoje significa bem mais sujeitar-se a punições ou perder o emprego sem justificativa, do que ter a possibilidade de folga ou ter salário razoável. Nada disso é “ser CLT” no texto legal, mas tudo isso é o que está contemplado na expressão “ser CLT”, no discurso de quem hostiliza os direitos trabalhistas.
Por isso, não há propriamente engano ou desconhecimento.
Há uma insatisfação real e pertinente com o que as relações de trabalho reguladas (foram transformadas) tornaram-se. Não que isso justifique o discurso da (falsa) autonomia, afinal também as empresas que operam em plataformas digitais “bloqueiam” ou “banem” trabalhadores sem justificativa, reduzem salário repassando os custos da atividade ou impedem concretamente as folgas nos horários em que remuneram melhor as corridas.
O fetiche do empreendedorismo
O ponto importante nesse debate está justamente no fato de que há um verdadeiro fetiche do empreendedorismo. Resultado de uma cultura que, no nosso caso, chega junto com os invasores europeus e que ao sustentar-se na razão escravista, pela qual corpos trabalhadores são corpos disponíveis, tem como resultado um paradoxo, com o qual até hoje a maioria de nós parece não saber lidar.
A relação de troca entre capital e trabalho, que segue sendo descrita como um contrato, é um modo de dominação tão mais intenso, quanto mais precárias forem as condições para o exercício do trabalho. Daí porque é tão fácil aderir ao discurso de que alugar uma motocicleta, ativar um cadastro em um aplicativo ou escolher o horário para iniciar a jornada constituem sinônimos de autonomia.
O paradoxo está justamente no fato de que essa autonomia só vai até a página dois. É exatamente isso que a greve dos apps mostra. Não há autonomia para definir o valor do trabalho nem possibilidade de parar a qualquer momento. Prova disso é que algumas empresas bloqueiam o aplicativo depois de 12h consecutivas de trabalho. Ora, houvesse autonomia e essa seria uma restrição impensável. Não pela ausência de patrão, mas pelo fato singelo de que o ideal de autonomia passa justamente pela ilusão do tempo livre. Houvesse autonomia, o trabalhador estaria definindo o valor do seu trabalho, sem precisar mobilizar-se coletivamente para exigir que a empresa garanta uma remuneração melhor.
A restrição imposta pela empresa que lucra com o trabalho dos motociclistas, seja quanto ao tempo de trabalho, seja em relação ao seu valor, ocorre porque na materialidade da vida a quantidade e a intensidade desse trabalho estão diretamente relacionadas à necessidade de viver, de adquirir bens necessários à sobrevivência. A tecnologia para a oferta do serviço e o lucro que dele se extrai, por sua vez, permanecem nas mãos da empresa. Essa é a descrição exata da relação de trabalho assalariado. Sempre foi a realidade da troca entre capital e trabalho. O direito do trabalho é o discurso que, ao menos, impõe limite a esse mesmo e único fenômeno social.
A polêmica tese da pejotização
Pois bem, chegamos então à polêmica tese proposta pelo TST e pelo STF, nesse último caso por meio do tema 1389. Não existe “modelo Pj”; existe relação comercial entre empresas, algo que nunca foi nem será objeto de discussão na Justiça do Trabalho. Não existe pejotização, senão como fraude à relação de emprego. Quando duas empresas negociam, elas trocam mercadorias ou serviços. E, nesse caso, nem cabe falar em pejotização, pois não se trata de explorar o trabalho de uma pessoa, para obter lucro. Quando alguém vende força de trabalho e recebe remuneração, há uma relação de emprego, direito fundamental reconhecido na Constituição da República.
O embrião dessa aparente confusão entre realidades tão profundamente distintas não é a terceirização, fenômeno que se assemelha apenas na desfaçatez da precarização que promove. É a constante resistência de quem detém capital em aceitar direitos sociais que impõem limites à exploração do trabalho. Deve ser compreendida, portanto, na realidade das mulheres que trabalham em estéticas, das vendedoras de produtos de beleza, dos chapas, das diaristas, das profissionais do sexo. Sempre houve parcelas significativas da classe trabalhadora à margem da proteção social trabalhista e não por acaso essas categorias contam com uma maioria de pessoas racializadas e de mulheres.
A Emenda Constitucional 45 de 2004 inoculou o vírus dessa proposital confusão, ao alterar a redação do artigo que trata da competência material da Justiça do Trabalho. Ao aumentar a competência para tratar de conflitos decorrentes da relação de trabalho, abriu a estrada para o esvaziamento ainda maior do discurso de proteção social construído em torno da expressão relação de emprego. Poucos perceberam e o alerta foi ignorado.
Em um contexto liberal, num país colonial-escravista, direitos sociais trabalhistas são um incômodo. Precisam ser eliminados. A tentativa de aprovar uma emenda extinguindo a Justiça do Trabalho, objetivo presente desde a década de 1990, não prosperou. A contrarreforma trabalhista de 2017 não teve o efeito de causar temor em quem efetivamente precisa do Estado para fazer valer direitos básicos como o acesso ao seguro-desemprego. O discurso do empreendedorismo é bem mais sutil e sedutor, especialmente em um contexto no qual os direitos trabalhistas não são respeitados.
Em resumo, o processo de destruição da proteção trabalhista que – é importante que se diga – tem múltiplos atores, agora ganha novos contornos. A impressionante aderência popular a essa mentira da pejotização incide sobre uma realidade prática de profundo sofrimento, como a dos motociclistas, muitos dos quais dormem na rua porque não têm dinheiro para colocar gasolina suficiente para retornar à casa. E é na consciência de classe dessa mesma categoria que talvez esteja a possibilidade de compreensão da manobra discursiva perversa que enreda, confunde e atrapalha a luta por direitos sociais trabalhistas. Consequentemente, é uma interessante oportunidade de resistência coletiva a mais essa profunda violência do capital contra a classe trabalhadora.
Em lugar da falsa questão de “ser ou não ser CLT” está a necessidade material e concreta de viver melhor. E viver melhor, em uma realidade capitalista, é ter mais tempo livre, mais remuneração, equipamentos de proteção, ambiente saudável de trabalho. Basta apenas reconhecer que é justamente o discurso do direito do trabalho que garante isso. Esse discurso, porém, não pode estar apenas na CLT, precisa ganhar efetividade na realidade das relações de trabalho. Precisa ser respeitado pela Justiça do Trabalho, a começar pelo direito fundamental de greve. Primeiro de maio aproxima-se e relembrar a história dessa data pode ser um passo inicial importante para aprofundar o debate que o breque dos apps nos convoca a fazer.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.