Como data que simboliza o enforcamento de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, desde 1965, o 21 de abril é considerado feriado nacional. Liderança da Inconfidência Mineira, movimento separatista organizado em Minas Gerais no século 18, Tiradentes é considerado uma figura envolta em muito mistério.
Por isso, o Brasil de Fato MG entrevistou João Antônio de Paula, professor da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutor em história econômica. Pesquisador sobre o movimento, ele nos conta a importância da figura de Tiradentes na construção da identidade nacional.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato MG – O que foi a Inconfidência Mineira?
João Antônio de Paula – Nós estamos falando de um evento que tem mais de 200 anos. O enforcamento de Tiradentes foi em 21 de abril de 1792, mas, ao longo do tempo, o episódio da inconfidência, ou Conjuração Mineira, e a própria figura do Tiradentes foram sendo apropriadas de maneiras muito variadas. Foram sendo ressignificados, ao longo do tempo.
Nós estamos falando, no contexto mais amplo, de um momento de crise do sistema colonial português. Portugal experimentou, no fim do século 18, uma crise profunda, por diversas razões, entre elas a própria crise da mineração de ouro. Desde 1760, a produção de ouro em Minas Gerais, que correspondia praticamente à totalidade do ouro produzido na colônia brasileira, começou a diminuir de maneira sistemática.
A coroa portuguesa, diante desse fato, começou a tentar explicar e combater essa decadência por meio dos métodos mais absurdos possíveis. O argumento principal era que havia muito contrabando, evasão e sonegação, coisas que efetivamente ocorriam, mas o fato fundamental não era esse. A crise da mineração era uma crise estrutural dos métodos arcaicos de extração do ouro.
Em função dessa crise, a coroa portuguesa começou a aumentar a pressão sobre a colônia, sobretudo por meio de instrumentos fiscais, aumentando tributos e a fiscalização. Uma das medidas adotadas foi a chamada “derrama”, uma espécie de cobrança.
O imposto mais importante que o Brasil transferia para Portugal era o quinto do ouro, 20% da produção total de ouro. Esses 20% tinham um valor mínimo que tinha que ser revertido para Portugal que não era mais alcançado durante décadas.
Então, em certo momento, a coroa falou “vamos cobrar tudo e vamos cobrar agora”. Isso foi a “derrama”. Essa decisão provocou um enorme desconforto e insatisfação entre os mineiros, sobretudo, porque aqui era o centro fundamental da produção de ouro.
Há alguns historiadores que dizem que, desde o início da década de 1780, começou a haver conversas entre os habitantes de Minas Gerais, a fim de encontrar uma solução para aquele problema. Então, há quem sustente que a Inconfidência Mineira, cujo período é datado entre 1789 e 1792, começou muito antes. Ou seja, o movimento, a discussão, a mobilização em torno do tema, teria começado muito antes.
O outro problema é que Minas Gerais, ao longo do século 18, foi uma capitania muito revoltosa. Desde a época do Conde de Assumar, em 1720, você tem uma série de movimentos de revoltas, de protesto, de tentativas de revolução, que vão acontecendo ao longo do século inteiro.
A Inconfidência Mineira não é a primeira de uma série de revoltas com sentidos muito diferenciados, mas que expressam uma mesma atitude geral de rebeldia, de inconformismo de Minas Gerais diante do sistema colonial.
Qual foi a importância desse movimento na história do Brasil?
A Inconfidência Mineira foi um movimento de enfrentamento ao colonialismo e à espoliação colonial. Se fosse nos dias de hoje, poderíamos fazer um paralelo com o imperialismo. Isso está na base do movimento. Minas Gerais foi, ao longo dos séculos 18 e 19, a capitania com maior número de quilombos do Brasil.
Em todo o território mineiro, havia quilombos. Houveram também várias revoltas de escravizados, como a de 1719. O que eu quero dizer é que a Inconfidência Mineira não é um raio em céu azul ou uma coisa que aconteceu de forma inexplicável.
Tem todo um contexto de revoltas anteriores, de tentativas que, em geral, foram frustradas, mas sobretudo, muito duramente reprimidas.
Ou seja, para entender a inconfidência é preciso pensar também a capitania de Minas Gerais, o seu dinamismo econômico e o seu sistema de cidades. Minas Gerais, ao contrário das outras capitanias, era uma região muito urbanizada, tinha muitas vilas e essas vilas se comunicavam, tinha uma vida urbana.
Havia também uma sociedade civil relativamente dinâmica e que foi constituindo uma identidade política.
O que a inconfidência significou para o Brasil colonial?
O principal legado foi a criação de uma identidade política, socioeconômica e cultural, com base numa história de compartilhamento. Quer dizer, a capitania criou, ao longo do século 18, uma vida cultural e política muito intensa, muito rica.
Isso os levou a ter um programa, que envolvia, por exemplo, a criação de uma universidade, coisa que não havia no Brasil; a criação de fábricas de pólvora e tecidos; a criação de um sistema de correio e comunicação; a transferência da capital de Ouro Preto para um outro local; a criação de um sistema monetário e tributário mais modernos; edição de papel moeda; etc. Era uma série de medidas econômicas e políticas relativamente avançadas para a época.
Eu diria que o projeto inconfidente, em certo sentido, é a primeira tentativa daquilo que depois se chamou de desenvolvimentismo, que, em Minas Gerais, sempre foi muito forte. Teófilo Otoni retomou esse projeto de um outro modo. Depois, tem João Pinheiro, que é uma figura que também vai replicar essas ideias. Mais tarde, veio o Juscelino Kubitschek. Todos eles são tributários de uma certa ideia da participação do poder público como instrumento de desenvolvimento nacional.
A inquietação mineira é uma espécie de núcleo do projeto de desenvolvimento nacional e de construção da nação. A ideia de uma identidade nacional estava sendo forjada por esse povo. Há muitas acusações, como a de que “a Inconfidência Mineira teria sido um movimento só das elites e dos letrados”.
É claro que a grande parte desses homens eram das elites, contratadores, militares e eclesiásticos. Mas havia também uma perspectiva de inclusão de setores populares. Uma das medidas que estava sendo debatida é a abolição da escravidão. Tiradentes defendia essa posição.
Eles queriam libertar os escravos também porque os escravos queriam apoiar o movimento. Ou seja, na medida em que o movimento acontecesse, os escravos libertos seriam uma força de apoio ao movimento da independência.
Por exemplo, quando Tiradentes foi executado, todas as igrejas de Minas Gerais começaram a tocar o sino. Tocar o sino em uma igreja é um sinal de luto, ou seja, de reverência e apoio ao movimento de Tiradentes.
Quando Tiradentes foi executado, Joaquim Silveira dos Reis, que foi um dos denunciantes, ficou em uma situação tão difícil em Minas, que ele precisou se mudar para o Maranhão, inclusive mudando de nome.
O que eu quero dizer com isso é que o movimento não foi tão sem repercussão, sem apoio, sem vínculos sociais e políticos com o povo. Tinha algum vínculo, ainda que isso fosse muito ambíguo.
Eles não tinham muita clareza se queriam fazer uma república ou uma monarquia. Alguns defendiam uma posição, outros defendiam outra, não havia um consenso sobre isso. Haviam várias questões em aberto e tudo isso fez o movimento ficar um pouco vacilante sobre diversos aspectos importantes. Mas, certamente, não foi um movimento desimportante.
Qual era a conexão da inconfidência com o contexto internacional da época? E quais foram as conquistas do movimento?
Havia uma ligação, inclusive pessoal, entre membros do movimento da inconfidência e representantes da República Americana, na França. Thomas Jefferson, por exemplo, que era embaixador francês nos Estados Unidos, conheceu os mineiros que estavam por lá.
Os mineiros ficaram muito impressionados com o movimento da República nos Estados Unidos, a independência de 1776, e a Constituição Americana de 1787. Eles trouxeram essas experiências para Minas Gerais e, inclusive, uma edição da Constituição Americana foi apreendida no estado com os que estavam fazendo o movimento da Inconfidência. Então, eles foram muito diretamente influenciados pelo exemplo estadunidense.
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Outra coisa é a coincidência temporal entre o início do movimento e a crise que vai levar à Revolução Francesa. Quando realmente começa a inconfidência, é muito difícil saber, mas é fato que em 1788 já ocorreram várias reuniões.
A revolta aconteceria no momento em que a derrama fosse instalada, mas o que aconteceu foi que as denúncias chegaram até o governo. Naquela época, já era governador o Visconde de Barbacena, que chegou em Minas Gerais com a ordem de implantar a derrama. Ele já tinha conhecimento do que estava acontecendo, mas recebeu uma denúncia formal do Joaquim Silvério dos Reis.
Por isso, o governador suspendeu a derrama. Com esse movimento, ele cria uma grande confusão entre os inconfidentes, porque agora eles não têm mais a data para a realização da revolta.
Havia toda uma articulação, em grande medida conduzida pelo Tiradentes, de utilizar o povo, em torno do projeto da independência, da separação de Portugal, em Minas e no Rio de Janeiro, com a perspectiva de incorporar outras províncias no processo. Mas, quando a derrama é suspensa, isso cria uma perplexidade, sem a data chave para começar o movimento.
Ao mesmo tempo, tanto o governo do vice-reinado, quanto o governador da capitania começam a articular a repressão. O primeiro a ser preso foi Tiradentes, que estava sendo vigiado. A partir daí, todos os outros envolvidos vão sendo presos.
Há quem fale em 84 pessoas envolvidas. Desses, 24 foram condenados e um acabou sendo executado. Inicialmente, a sentença era de morte para todos. O crime da chamada inconfidência era considerado de lesa majestade e tinha pena capital.
Mas veio uma comissão de Lisboa para o Rio de Janeiro, trazendo uma carta em que a rainha, por meio do primeiro-ministro, afirma que, apesar de todos serem condenados, só um receberia efetivamente a pena capital, Tiradentes. Os outros vão ter exílio, degredo e outros tipos de prisão.
Essa decisão já estava tomada antes mesmo do processo. Os presos são interrogados e quase todos eles não assumem a culpa. O único que manteve uma atitude firme, corajosa e lúcida em relação a ao movimento foi Tiradentes.
Ele passa por três interrogações e não fala nada, não assume culpa nenhuma. Em janeiro de 1790, quase um ano depois da prisão, ele muda de opinião e resolve assumir a culpa sozinho.
Tiradentes usou uma expressão muito importante: “a coroa é como uma esponja, suga toda a riqueza da colônia. A coroa nos sufoca, nos exauri, nos espolia.”
O próprio Tiradentes virou um importante símbolo para a identidade nacional, sendo celebrado até hoje. Qual foi a sua importância para a Inconfidência Mineira?
Hoje em dia, nós temos uma imagem mais ou menos corrente sobre Tiradentes, que é muito diferente da que havia no século 18, quando ele foi morto, ou mesmo ao longo dos séculos 19 e 20. Cada geração, cada conjuntura política, construiu um Tiradentes diferente da anterior e, talvez, diferente inclusive do que foi o verdadeiro Tiradentes.
O fato é que essa profusão de imagens do Tiradentes acaba fazendo com que o personagem, a figura dele, seja muito difícil de ser fixada. Isso torna mais complexa a compreensão sobre o seu significado. Tiradentes foi apropriado por todos.
É tão complicado que ele virou herói português. Veja só a confusão: ele foi morto por Portugal e agora resolveram transformá-lo também em herói português. É muito estranho, não faz muito sentido.
Ele foi a referência, por exemplo, dos golpistas de 1964. O movimento dos golpistas mineiros eram os “novos inconfidentes”. Mas, nessa mesma época, as ligas camponesas criaram um movimento de luta armada que se chamava Movimento Radical Tiradentes.
Ou seja, tanto a esquerda quanto a direita se apropriaram do Tiradentes. É isso o que torna a figura ambígua, difícil de ser enquadrada, porque existem aí vários Tiradentes sendo pensados, sendo construídos.
Eu acredito que ele foi uma figura fundamental no movimento da inconfidência pela sua firmeza, seu caráter, por ser uma pessoa com uma integridade enorme.
A literatura da época, sobretudo do século 19, considerava ele um sujeito meio maluco, meio falastrão, o que é um absurdo completo. A função do Tiradentes no movimento era de fazer propaganda. Como é que você pode fazer propaganda sendo discreto, sendo silencioso?
A propaganda pressupõe o risco de divulgar ideias que eram completamente subversivas para a época. Então, essa imagem do Tiradentes meio “amalucado” é uma ideia absolutamente idiota, do ponto de vista histórico. Um propagandista tem de fazer propaganda, é a função dele e, por isso mesmo, se arrisca mais do que os outros.
Ele pagou o preço também por ser, entre todas as lideranças, o único que não era rico. Ele era um homem modesto, um dentista, que teve que fazer várias coisas na vida para tentar sobreviver. Não tinha recurso, não tinha dinheiro. Quanto aos seus colegas, alguns deles eram muito ricos.
Tiradentes é considerado patrono das polícias civil e militar. Essa alcunha é coerente com sua participação histórica?
Não. Tem um livro chamado “Tiradentes, o construtor da ordem”, mas ele não era o construtor da ordem. Tiradentes é claramente um homem subversivo, um homem que quer subverter as relações de dependência, de subordinação da colônia em relação à metrópole.
A apropriação que foi feita da figura dele tem a ver com a necessidade de domesticar, pasteurizar a inconfidência. Porque o movimento tinha vários lados. Um lado era esse de uma certa elite oportunista que queria se livrar das dívidas.
Mas havia setores, entre eles o Tiradentes, de realmente um envolvimento ideológico e político legítimo. Então, a figura de Tiradentes é uma figura em disputa. A direita resolveu tomá-lo para si. Tiradentes é uma figura importante, não é essa caricatura que fizeram dele
Por que ainda hoje celebramos o feriado de 21 de abril?
Eu acho que é um momento importante para discutir isso. Para dizer que existem vários Tiradentes, mas um deles nos interessa, interessa à esquerda brasileira e àqueles que defendem a democracia e às realidade populares no Brasil.