O Brasil está combatendo efetivamente as desigualdades de gênero e raça? A nota Políticas orientadas ao enfrentamento das desigualdades de gênero no Brasil: desafios, oportunidades e recomendações responde que não. Feito por pesquisadores do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, o documento analisa a efetividade das políticas sociais brasileiras. Segundo Amanda Resende, economista, pesquisadora do Made e uma das autoras do texto, “sem uma priorização das políticas sociais, é impossível que desigualdades como a desigualdade de gênero, que são estruturais, sejam efetivamente combatidas”.
A nota caracteriza a política fiscal como crucial para reduzir as disparidades de gênero e raça. De acordo com o trabalho, o Novo Arcabouço Fiscal (NAF), criado em 2023 pelo governo Lula, flexibilizou os gastos públicos, mas não o suficiente para tornar efetivas as políticas relacionadas às questões de gênero.
Letícia Graça, internacionalista, coordenadora estratégica do Made e também autora da nota, diz que a forma como o governo atual lida com as políticas sociais é contraditória. “Ao mesmo tempo que o governo inaugura políticas inquestionáveis do nível de importância e necessidade social, a gente tem políticas econômicas que são, eu ousaria dizer, até mesmo liberais (…). É como se houvesse dois governos.” A especialista explica que essa é uma estratégia para ampliar a aprovação popular.
Amanda Resende afirma que a contenção de gastos em áreas sociais vem de uma ideia de que é impossível conciliar equilíbrio fiscal e bem-estar social. A especialista diz que essa é uma narrativa falsa e que é possível investir em redução de desigualdades sem extrapolar a dívida pública. “Uma das propostas possíveis é taxar mais a população de alta renda no Brasil, o topo do topo, que tem uma renda extremamente elevada e que paga muito pouco imposto proporcionalmente ao restante da população”, diz Amanda.
Para onde vai esse dinheiro?
A atual distribuição do orçamento é criticada pela pesquisa. “Qual vai ser a sua escolha? Manter os mínimos de saúde e educação, que garantem boa parte das políticas de cuidado que nós temos hoje em dia, ou permitir que os supersalários do Poder Judiciário e de outras instâncias do governo continuem em pleno vigor?”, a economista questiona. Um levantamento do Movimento Pessoas à Frente calculou que os supersalários do Judiciário e do Ministério Público retiraram mais de R$ 11 bilhões do dinheiro público em 2023.
O texto aponta que as escolhas orçamentárias que se afastam das questões de gênero são também consequência da pouca presença feminina em cargos do governo. No ranking da Inter-Parliamentary Union de 2024 sobre o porcentual de mulheres nos parlamentos nacionais, o Brasil está no 135ª lugar de 186 países.
O texto afirma que, apesar dos partidos terem programas e pronunciamentos a favor da igualdade de gênero e raça, os dados mostram que as ações “têm sido insuficientes”. Segundo Amanda e Letícia, os partidos nem sempre seguem a lei do mínimo de 30% de mulheres candidatas. Ao mesmo tempo, quem quebra essa regra pode ser anistiado. Letícia explica que eles “botam um pouco de mulheres e pessoas negras de fachada, só para cumprir essa cota e não ficar inadimplentes frente ao tribunal eleitoral”.
A coordenadora diz que a falta de representatividade está ligada tanto aos processos eleitorais quanto à sociedade patriarcal e racista brasileira. Amanda também comenta que existe uma visão de que ser um homem branco representa uma neutralidade em relação a outras pessoas, quando, na verdade, é impossível ser totalmente imparcial.
A nota do Made descreve a importância de existirem dados atualizados sobre a população brasileira. Para mapear as desigualdades, esses dados precisam estar separados por raça e gênero. Um exemplo de estudo que coleta essas informações é a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE.
No entanto, esses materiais não são neutros. As pessoas que realizam as pesquisas, assim como todas as outras, possuem visões de mundo que influenciam as escolhas de qual e como cada informação será coletada. Os autores do texto dão destaque para a falta de pesquisas brasileiras sobre o uso do tempo. Esse dado mostraria, de forma precisa, quanto tempo cada pessoa gasta com tarefas domésticas e de cuidado, ou seja, fora do trabalho e dos estudos. Ele também mediria o quanto o trabalho de cuidado não remunerado agrega na economia do País.
De acordo com Letícia, a falta de informações sobre trabalho doméstico não remunerado atinge mais as mulheres negras. Dados da Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família relatam que elas representam 45% dos trabalhadores do cuidado. “O cuidado é um tema que começou a ser debatido agora, mas que é uma das grandes dívidas públicas com as mulheres, principalmente com as negras e marginalizadas”, complementa a coordenadora. O IBGE irá inserir dados sobre o uso do tempo na próxima edição da POF, com publicação prevista para 2026.
A pesquisa do Made é produto de outro projeto, o Projeto Macro Feministas Latino-Americanas, uma rede de macroeconomistas do Brasil, Chile, Argentina, Uruguai e Colômbia. As pesquisadoras analisam a macroeconomia e as políticas públicas ligadas a gênero e raça que existem e que faltam em cada país da rede.
Para ler o texto completo, acesse aqui.
*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles
Artigo original publicado em Jornal USP.