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Chapada do Lagoão: nada sobre o território sem ouvir quem o habita

Proposta de redução da APA em, aproximadamente, 6 mil hectares enfrenta reação popular e é suspensa por decisão judicial

Quando se fala da Chapada do Lagoão, em Araçuaí, fala-se de um ecossistema inteiro: das nascentes que abastecem a região, da vegetação nativa que protege o solo, dos modos de vida das comunidades tradicionais que resistem à escassez de água e à degradação ambiental.

Criada pela Lei Municipal nº 89, de 2007, a Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Lagoão ocupa cerca de 24 mil hectares e é uma das principais garantias de proteção ambiental do município.

A proposta de reduzir essa área em cerca de 6 mil hectares — apresentada pelo Executivo Municipal em fevereiro deste ano — mobilizou entidades, coletivos ambientais e lideranças comunitárias, que passaram a denunciar os riscos envolvidos e a cobrar debate público com participação das comunidades afetadas.

Embora o projeto de lei tente justificar a redução com base em ajustes territoriais entre Araçuaí e Caraí, os mapas mostram outra realidade: o corte proposto vai muito além da suposta sobreposição, atingindo áreas de alta relevância ecológica e com forte presença de comunidades tradicionais.

O falso progresso do “Vale do Lítio”

A proposta não pode ser compreendida fora do contexto da cobiça mineral que avança sobre a região. A área, que abriga dezenas de nascentes e cumpre papel central na preservação ambiental, tem sido alvo de pressões ligadas à mineração — especialmente à exploração do lítio, um recurso cada vez mais valorizado no mercado global.

As promessas de desenvolvimento atreladas à exploração do lítio não são novidade. Mas por trás da ideia sedutora de um “Vale do Lítio” se esconde um modelo de exploração predatório, que exclui as comunidades locais. Não é coincidência que o projeto avance sobre áreas onde já existem estudos minerários, como os da Atlas Lithium.

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Trata-se de uma tentativa de abrir caminho, ainda que discretamente, para empreendimentos que colocam em risco nossas nascentes, nossa biodiversidade e o modo de vida das comunidades tradicionais, aprofundando relações de minero-dependência.

Decidir sobre o futuro exige participação

A proposta levanta preocupações legítimas quanto a seus impactos sociais e ambientais. A ausência de consulta às comunidades e a tramitação acelerada do projeto geraram insegurança e resistência por parte da população e de órgãos reguladores. Não se trata apenas de uma questão técnica — é uma decisão com implicações profundas, que exige atenção à legislação ambiental e aos direitos coletivos.

Durante o processo, diversas tentativas de diálogo foram ignoradas. A mais recente foi em 10 de abril, durante audiência na Câmara Municipal. Na ocasião, o promotor Rauali Kind, coordenador das bacias dos rios Jequitinhonha e Mucuri, apontou irregularidades no projeto. Após ter sua fala desconsiderada, deixou a audiência.

Diante da gravidade da proposta e dos riscos que ela representa ao meio ambiente e aos direitos das comunidades locais, o Ministério Público acionou a Justiça, que suspendeu a tramitação do projeto por meio de liminar. A decisão aponta riscos de danos ambientais irreversíveis, descumprimento da Convenção 169 da OIT, ausência de estudos técnicos e ameaça à proteção de áreas prioritárias para conservação — onde se concentram nascentes, reservas legais e vegetação nativa essencial para o abastecimento hídrico da região.

Essa vitória também é fruto das mobilizações de lideranças comunitárias e entidades ambientalistas, que atuam de forma articulada desde a apresentação do projeto para evidenciar o que há de mais grave nesse processo: a crise hídrica e climática que afeta Araçuaí e região.

Que essa suspensão seja o início de um processo mais justo, com escuta, responsabilidade e compromisso coletivo com o Bem Viver.

Dr. Jean Freire é médico e deputado estadual de Minas Gerais pelo Partido dos Trabalhadores (PT)

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— Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

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