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Lei Marco de Agroecologia fortalece combate à crise climática na América Latina e Caribe

Nova lei é baseada em proposta de organizações da sociedade civil e gestores públicos consultados pela FAO

O Parlamento Latino-americano e Caribenho (Parlatino) aprovou, em dezembro passado, a Lei Marco de Agroecologia, que poderá servir de base para os países da região elaborarem suas próprias legislações na área. A lei é baseada em uma proposta de projeto requisitada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) para atender o compromisso internacional de implementar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODS). Entre outros objetivos, os ODS estabelecem a necessidade de promoção de sistemas sustentáveis ​​de produção alimentar e práticas agrícolas que contribuam para a manutenção dos ecossistemas, melhorando a qualidade do solo e reforçando as capacidades locais de adaptação às mudanças climáticas. O projeto da lei foi encomendado à AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, que integra a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), e contou com a colaboração de docentes do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS) e da organização Terra de Direitos.

O Parlatino é composto pelos Congressos Nacionais e por Assembleias Legislativas da Argentina, Aruba, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Curaçau, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Haiti (convidado), México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Uruguai e Venezuela. As leis marco aprovadas no Parlatino estão alinhadas com prioridades políticas estabelecidas em acordos internacionais, como os ODS. Embora não tenham poder vinculante, oferecem referências para a elaboração de leis específicas para os poderes legislativos nacionais e subnacionais.

Para elaborar a proposta, foi organizada uma série de reuniões virtuais para consulta a lideranças de diferentes países da América do Sul, da América Central e do Caribe. De acordo com Catia Grisa, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e uma das responsáveis pela mediação e sistematização das discussões, essas consultas envolveram representações de movimentos sociais, ONGs, gestores públicos e acadêmicos. “O resultado desses diálogos serviu de base para a elaboração da proposta de projeto de lei que entregamos à FAO”, explica Grisa. 

Emma Siliprandi, engenheira agrônoma e funcionária da FAO durante a realização do projeto, afirma que a lei é um grande avanço. “Representa um consenso entre os parlamentares de diferentes países, além de resultar de uma consulta pública com diferentes setores. Isso significa que essa união dos parlamentos de toda a América Latina e do Caribe está de acordo com a necessidade de legislar sobre atividades ligadas à agroecologia, fomentar e regulamentar as práticas agroecológicas”. Siliprandi conta que que, no Brasil, a Lei Marco de Agroecologia foi discutida, principalmente, pela Comissão de Agricultura, Pecuária e Pesca da Câmara dos Deputados, onde foi apresentada e debatida várias vezes antes de ser aprovada no plenário.

“Devemos celebrar a promulgação dessa Lei Marco como um reconhecimento institucional da agroecologia em âmbito internacional”, defende Paulo Petersen, agrônomo da AS-PTA e integrante do núcleo executivo da ANA, que esteve envolvido na elaboração da proposta de lei encomendada pela FAO. Para Petersen, “a proposta apresentada contemplou um conjunto de conceitos e mecanismos de implementação e governança fundamentais para demarcar a agroecologia como um referencial sócio-técnico e um paradigma científico que coloca em xeque os fundamentos do regime agroalimentar neoliberal, dominante em nível global”. 

Importância para o Brasil

Para as organizações sociais do campo agroecológico, ter a Lei Marco de Agroecologia como referência para a promoção de alternativas ao modelo do agronegócio é um fator de grande importância no momento em que o Brasil organiza a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), em Belém (PA). “Assim como a Lei Modelo de Agroecologia, a COP é internacional, e será um bom momento para os países conhecerem a lei e assumirem compromissos com a pauta da agroecologia”, analisa Jaqueline Andrade, assessora jurídica da Terra de Direitos. 

A aprovação da lei no final do ano passado torna-se ainda mais relevante considerando o forte impacto do agronegócio para a crise climática. O regime de chuvas tem se alterado no Brasil com a intensificação do desmatamento da Amazônia e do Cerrado para a expansão da pecuária e o plantio de monoculturas, como o milho, o trigo e a soja, bem como o uso crescente de agrotóxicos e outros agroquímicos. 

Em contraste com o agronegócio, a agroecologia é um modelo que se sustenta numa relação de equilíbrio com a natureza, porque compreende que a terra, a água e a biodiversidade precisam ser preservadas, inclusive para assegurar a vida de gerações futuras. Andrade destaca que “o agronegócio tampouco é pop, é um modelo propulsor da crise climática, marcado pela violação de direitos humanos e pelo aumento das desigualdades sociais, inclusive da fome”.

Além da realização do maior encontro sobre o clima, há outro aspecto de importância da aprovação da Lei Modelo de Agroecologia para o Brasil. O país segue, desde 2008, como líder mundial no uso de agrotóxicos e aprovações recordes de agrotóxicos a cada governo. Com a aprovação da Lei 14.785/2023, conhecida como “Pacote do Veneno”, o cenário deve piorar, já que a nova legislação flexibiliza as regras para uso e aprovação de agrotóxicos no país. Diante da violação de direitos à saúde, ao meio ambiente, à administração pública, entre outros, a lei do “Pacote do Veneno” é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade 7701 (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF). Não há ainda previsão de quando a ação deve ser julgada pela Corte.

Nesse contexto, as organizações sociais destacam que a aprovação da lei também pode contribuir para o avanço da implementação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), pelo governo federal. Elaborado em 2014, mas ainda não implementado devido à resistência do agronegócio, o Programa objetiva implementar ações que contribuam para a redução progressiva do uso de agrotóxicos danosos à saúde humana e ao meio ambiente. 

Destaques da lei

A Lei Marco de Agroecologia reconhece a agroecologia como um conceito em disputa, que engloba tanto uma perspectiva científica, um enfoque relacionado às práticas de organização técnica e econômica dos sistemas agroalimentares  e, pelo seu caráter contestador da ordem alimentar dominante, um movimento social. 

A lei reconhece a agroecologia ainda como uma abordagem que contempla o conjunto do sistema agroalimentar. Nesse sentido, visa uma transformação estrutural do sistema, desde a produção até o consumo, passando pelos elos do processamento e da distribuição. Em função dessa abordagem sistêmica, assinala que a agroecologia deve ser institucionalizada a partir de uma perspectiva multidimensional, envolvendo os diversos setores das administrações públicas, e não só aqueles mais diretamente ligados às políticas agrícolas e alimentares. Essa perspectiva intersetorial deve ser assegurada por espaços de governança que envolvam diferentes órgãos, secretarias e ministérios dos poderes executivos. 

O texto da lei deixa claro que a agroecologia está fortemente ancorada na promoção e na valorização da biodiversidade, mas que não deve ser interpretada somente como uma substituição de práticas da agroquímica por biológicas. Seu foco é a transformação dos sistemas agroalimentares para que sejam mais sustentáveis, resilientes e equitativos. Nesse sentido, indica que a agroecologia deve abordar as desigualdades estruturais de gênero, etnia e raça, reconhecendo e valorizando o trabalho de mulheres, jovens, povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais, agricultores e agricultoras familiares.  

Para Siliprandi, é muito importante a vinculação da lei de agroecologia com a reafirmação e defesa de direitos. “A lei tem um forte componente de direitos das mulheres, dos jovens e das populações tradicionais e reconhece as pessoas que fazem agricultura do ponto de vista agroecológico como sujeitos ativos não só das práticas, mas também dos conhecimentos”, explica.

A lei aprovada destaca a importância da participação social na definição do desenho e da implementação das políticas públicas. Mesmo assim, como destaca Paulo Niederle, professor da UFRGS e consultor do projeto, “há aspectos relacionados ao reconhecimento e proteção dos bens comuns, incluindo a terra e a água, que ainda precisam ser melhor tratados, o que agora dependerá do modo como a internacionalização da lei marco ocorrerá em cada país”.

Ausências na lei

Pontos importantes que surgiram nas consultas a diferentes setores da sociedade civil presentes na proposta apresentada à FAO acabaram não sendo contemplados na lei. Entre eles a necessidade da reforma agrária e da defesa e do fortalecimento dos bens comuns. Petersen destaca que a não inclusão da reforma agrária numa lei de agroecologia é inconcebível, ainda mais em uma região historicamente marcada pela forte concentração fundiária. “Não há possibilidade de expandir a agroecologia como um projeto de transformação dos sistemas agroalimentares enquanto os bens da natureza, a começar pela terra, seguirem sendo regulados como mercadorias como outras quaisquer”, defende Paulo Petersen.

Outra importante ausência no texto final está relacionada à limitada relevância atribuída à  participação da sociedade civil nos órgãos dirigentes das políticas. “Como se trata de uma lei marco, quando fizerem as leis nos diferentes países é sempre possível avançar. A lei marco é um consenso mínimo entre os diferentes países. Então, trata-se, agora, de movimentos sociais, movimentos camponeses, movimentos das mulheres rurais, movimentos de pescadores e indígenas se apropriarem do texto da lei e pressionarem os seus próprios governos e legislativos para que implementem legislações e regulamentos de acordo com o interesse de cada região”, conclui Siliprandi.

Embora a lei aprovada seja uma referência importante, é necessária a mobilização da sociedade civil e dos movimentos sociais para impulsionarem sua concretização e aprimoramento. “Daqui pra frente, deve ser objeto de debate em diferentes espaços, congressos, eventos, para que a gente impulsione essa agenda, sobretudo nos países em que se tem notado maior permeabilidade para avanços nessa direção, com destaque nesse momento para a Colômbia, para a Bolívia e para o Brasil”, destaca Petersen.

O debate da agroecologia tem avançado de forma intermitente e em ritmos variados entre os países da América Latina. “Na Argentina, houve avanços importantes no governo passado. Mas com o governo Milei, verificou-se um desmonte acelerado. No Chile, há iniciativas, mas sob forte cerceamento das forças conservadoras, tal como assistimos no Brasil. Nos demais países da região, é possível identificar muitas frentes de inovação institucional na direção da agroecologia, mas são ainda difusas e desarticuladas entre si”, diz Petersen. 

Para Alvaro Acevedo, professor da Facultad de Ciencias Agrarias, da Universidad Nacional de Colombia, a aprovação da Lei Marco de Agroecologia é o reconhecimento da necessidade de avançar para sistemas agroalimentares sustentáveis, saudáveis ​​e resilientes, como também procurar respostas consistentes à crise gerada pelas mudanças climáticas. “Este é sem dúvida um fato histórico que nos permite reconhecer o enorme trabalho que muitas organizações de agricultores, famílias étnicas e comunitárias realizaram durante cerca de 50 anos de trabalho em agroecologia na região”, celebra Acevedo.

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