Neste século XXI, entre avanços e retrocessos (assustadores), conquistamos no direito constitucional uma outra perspectiva da vida que supera o antropocentrismo.
O direito constitucional moderno começou com uma perspectiva restrita, protegendo apenas os homens brancos, e garantindo o direito ao voto apenas para homens, brancos, proprietário e ricos. Este direito foi sendo modificado com o tempo, decorrente de lutas históricas nos últimos séculos.
Os grupos excluídos do constitucionalismo liberal, originário das revoluções burguesas dos séculos 17 e 18, passou gradualmente a ampliar seu campo de proteção, incorporando com o tempo os direitos dos trabalhadores, das mulheres, negros, indígenas, população LGBTQIA+, quilombolas e diversas comunidades tradicionais. Muitos desses direitos só foram conquistados no final do século 20 e neste século 21, e ainda são constantemente violados.
Neste complexo e acelerado século 21 em que vivemos, a conquista das constituições plurinacionais, após processos revolucionários no Equador (2008) e Bolívia (2009), trazem, consagrada nos textos constitucionais, uma outra compreensão da vida, uma outra ética da vida, encontrada em diversas etnias originárias do território que o invasor europeu chamou de “América”.
A partir desse momento, a discussão de outro fundamento ético, filosófico e jurídico para a proteção da vida, cresceu e resultou em muitos livros, dissertações e teses, que repercutem o aprendizado com as culturas originárias nas “Américas” e “África”.
A perspectiva antropocêntrica, que ainda é hegemônica no Brasil, decorrente de uma ideologia que contraria a própria vida, compreende o ser humano como um “indivíduo” separado da natureza, decorrendo daí a transformação da natureza em recurso a ser explorado, para satisfazer uma grande variedade de necessidades inventadas na sociedade do ultra consumo.
Buscando outras compreensões e formas de proteger a vida, correntes jurídicas animalocêntricas ganharam maior visibilidade no final do século 20, refletindo em decisões judiciais protegendo o direito à vida, liberdade e integridade física e moral de outros animais. O biocentrismo, enquanto corrente de pensamento jurídico estende essa proteção às mais diversas formas de vida, e muitos pensadores encontram suporte para essa proteção jurídica nas constituições plurinacionais.
Ser humano é um ecossistema
Entretanto, o grande passo foi dado na construção de uma ética da vida, e um direito, ecocêntrico. Essa compreensão encontrada em estudos, livros, debates e decisões judicias nas Cortes do Equador, Colômbia e na Corte Constitucional Plurinacional da Bolívia, se aproxima de compreensões da vida que hoje encontram suporte em estudos da biologia contemporânea e na física quântica: tudo está ligado com tudo e não há vida, na forma como conhecemos até o momento, que não seja coletiva, ou seja, que não seja dependente e integrada com outras formas de vida.
O ser humano mesmo é um ecossistema, e depende do equilíbrio entre as bactérias e fungos que habitam seu corpo, para que permaneça vivo. Um livro interessante ressalta a perspectiva de que somos singularidades coletivas, ecossistemas. A bióloga e zoóloga Alanna Collen nos ensina que “para cada célula que compõe o recipiente que você se acostumou a chamar de ‘meu corpo’, existem nove células impostoras pegando carona.
Você não é formado só de carne e sangue, músculo e osso, cérebro e pele. Há também bactérias e fungos. Você é mais ‘eles’ do que ‘você’. Somente seu intestino abriga 100 trilhões deles, como um recife de coral no leito escarpado que é o seu intestino”, afirmou Alanna Collen, no livro 10% humano.
Esta percepção da vida como sistema composto de singularidades coletivas como somos nós, animais, repercute em uma outra forma de lidar com tudo. O ecocentrismo se diferencia do antropo, animalo e biocentrismo, pelo fato de ressaltar a existência de singularidade coletivas que são os ecossistemas. Na Colômbia, por exemplo, entre muitas outras decisões, a Corte Constitucional reconheceu o direito do rio Atrato, aliás, o ecossistema do rio Atrato, como sujeito de direitos.
Fica o convite ao debate. A Sociedade Brasileira de Bioética oferecerá para todas as pessoas interessadas, assuntos que envolvem a ética da vida, nesta coluna quinzenal no Brasil de Fato.
José Luiz Quadros de Magalhães é professor e presidente da Sociedade Brasileira de Bioética em Minas Gerais.
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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato