Por Trinidad Vaccarezza
A antropóloga Rita Segato diz que vivemos tempos nos quais prolifera a pedagogia da crueldade. Ela se refere com isto a todos os atos e práticas que ensinam, habituam e programam os sujeitos a transmutar “o vivo”, ou seja, tudo aquilo que flui errante e imprevisível na sua vitalidade, em coisas.
Diz ela que a repetição destes atos e práticas produz a normalização de uma “paisagem de crueldade” e, assim, promove nas pessoas baixos umbrais de empatia e sensibilidade indispensáveis à manutenção desta fase predatória do capital. Com isto, afirma, se quebram os laços de solidariedade que sustentam a vida entre as pessoas, já que enquanto os vínculos produzem comunidade, as coisas produzem indivíduos, os quais são, ao mesmo tempo, transformados em coisas.
As pedagogias da crueldade têm uma história longa e duradoura em nossa região latino-americana e caribenha. Não é de hoje que pessoas são tratadas como coisas e coisas são mais protegidas do que pessoas. Em nossas sociedades, houve épocas em que a crueldade se instaurou como projeto político dominante por meio da violência institucionalizada e a hierarquização da vida, produzindo o extermínio físico e cultural de diversos povos e gentes, e junto, os seus modos de pensar e fazer o mundo.
Isto implica reconhecer, como ensinou Hannah Arendt com a noção de “banalidade do mal”, que não é preciso ser um monstro para se transformar em verdugo: sistemas políticos são capazes de tudo isso.
Assimetria abissal
Porém, se todo projeto político precisa construir os seus sujeitos pedagógicos, a crueldade também deve ser entendida como uma pedagogia que tem sido viabilizada entre nós. Podemos pensar que o desdobramento desse projeto fundou um tipo de vínculo pedagógico baseado em uma assimetria abissal entre quem se posiciona como sujeito do saber e, portanto, pode ensinar, e quem não sabe e deve, apenas, aprender (ou assimilar e se adaptar a um modo de existir).
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
Trata-se de um vínculo em que se descarta todo conhecimento e experiência prévios de quem se encontra na posição de aprendiz – de não saber -, reduzindo a pessoa àquilo que o pensamento iluminista chamou de “tábula rasa”, algo similar ao que Paulo Freire, dois séculos depois, denominaria como “depósito” e Rita Segato entende como “coisa”. E, o pior, é que esse vínculo não tem se estabelecido como pedagogia apenas em instituições ou instâncias educativas mais ou menos sistematizadas. Também se reproduz, por exemplo, nas relações sociais mediadas ou não pelas telas, nas decisões dos nossos representantes políticos e nas lógicas de funcionamento do mercado sempre que a linguagem que se fala admite apenas uma forma de ser e de dizer.
Perpetuação de opressões
A paisagem generalizada de desproteção e precariedade em que vivemos, onde pessoas são retiradas das suas casas e deportadas em aviões com algemas nas mãos e correntes nos pés, não cansa de fabricar imagens que constroem narrativas em prol da perpetuação de opressões.
Isto pode tornar opaco o fato de que nas paisagens sempre moraram pessoas que, apesar de tudo isso, insistiram em atestar, como o filme nos relembra, que “ainda estamos aqui”. A ultradireita, com a sua histórica ilusão de refundação das sociedades, delimita posições político-pedagógicas que tentam apagar uma verdade inevitável: o opressor tem método, mas, como apontou Freire, o oprimido também tem.
Quais são as linguagens, as pedagogias, os projetos que têm sido capazes de interromper (e reparar) a crueldade?
Um projeto pedagógico contra a crueldade pode começar quando este se propõe construir um nós em comum que seja refratário aos modos da ultra-direita de dicotomizar. Como disse Hannah Arendt, n’A condição humana, a pluralidade humana é a condição humana e o lugar dessa pluralidade é o mundo que somos capazes de criar.
A nossa proposta, então, capaz de gerar multipolaridades, se parece mais ao espaço-tempo da comensalidade, entendida tanto como a alegria compartilhada que fortalece os vínculos, quanto como a importante tarefa de criação de uma linguagem que permita falar sobre os nossos dilemas e conflitos. Permanecer na mesa implicaria, assim, sustentar uma posição mais do que uma certeza. Nosso projeto pode se parecer com isso: um lugar de congregação, mas que como faz uma mesa, nos impede de cair uns sobre os outros.
Ouvi de uma colega um tempo atrás que a vida pode ser vivida com curiosidade ou com medo. Arrisco dizer que esse nosso projeto, diante do medo organizado, responde com curiosidade. Não se trata de uma posição informada na ingenuidade, como nos advertia Paulo Freire, mas da curiosidade como necessidade ontológica que constrói outra coisa, uma exterioridade, uma outra paisagem. A curiosidade pode ser uma forma da perplexidade que, como falou Alexandre Fernandez Vaz em uma coluna anterior, demonstra inteligência e sensibilidade frente a fenômenos de grande força histórica.
A nossa curiosidade se informa, ainda, em um aspecto que faz parte da história da nossa região e que considero central deste nosso “método”: ela se nutre da potência pedagógica da imaginação. Como diz Adriana Puiggrós a propósito do tempo na prisão de Frei Betto e Paulo Freire: “Betto e Freire amam a imaginação. Como sobreviveria um preso sem ela? Como, um educador?”
A imaginação, como produção ativa e cooperativa do pensar, importa quando recuperamos e revitalizamos posições que unem a pedagogia com um projeto de sociedade, reinventando uma paisagem que, frente à crueldade, é capaz de inspirar amor por aquilo que sustenta a nossa mesa: a democracia, as nossas histórias, o nosso pedaço de mundo.
Trinidad Vaccarezza é pedagoga pela Universidad de Buenos Aires, Argentina, e doutoranda em Educação na Universidade Federal de Minas Gerais. Integra o Grupo de Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos (GRUPEJA) e o Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (GESTRADO), ambos da Faculdade de Educação/UFMG.
—
Leia outros artigos da Coluna Cidade das Letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
—
Este é um artigo de opinião, a visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal