Por Luciano Mendes e Natália Gil
Há décadas realizamos pesquisas e há muitos anos orientamos alunos de graduação e pós-graduação. Em todo este tempo, temos nos mantido vigilantes, e alertado as pessoas que orientamos, sobre um dos princípios básicos da metodologia de pesquisa: o cuidado que é preciso ter quanto à proximidade ou ao distanciamento em relação ao “objeto de pesquisa”. Tanto uma situação como a outra trazem desafios que precisamos levar em conta.
A familiaridade com aquilo que se pesquisa e sobre o tema do qual se fala, torna quem pesquisa sensível aos detalhes e pode possibilitar ver e entender aspectos que, para alguém de fora, é muito mais difícil e, às vezes, impossível notar. Sensibilidade a certas questões da experiência e da cultura des outres não se aprende de uma hora para outra ou, mesmo, no transcurso de uma longa pesquisa.
Por outro lado, tanto na pesquisa como na vida cotidiana, pode também acontecer que a pessoa que é “estrangeira”, que é de fora, estranhe o que vê e, por meio desse estranhamento, possa, afinal, enxergar nuances que as sensibilidades compartilhadas pelos “nativos” tornam mais difícil perceber dada, por exemplo, a sua naturalização.
“Nada sobre nós sem nós” é uma manifestação importante
Nesta perspectiva, temos entendido a ideia de “lugar de fala” tanto em suas dimensão e legitimidade políticas quanto epistemológica. O “nada sobre nós sem nós” é uma manifestação importante neste sentido.
Isso quer dizer que, em nossa perspectiva, os olhares de quem é de “dentro” e de quem é “de fora” podem ser complementarmente mais potentes do que o de uma das posições apenas, assim como a ação política também.
A legitimidade da crítica ao “identitarISMO”, ou à posição “identitarISTA” (ambas palavras não neutras, por suposto), como epistemologia ou política, precisa, em nosso ponto de vista, ser enfrentada sem que se recaia no reforço daquilo que se critica.
Maria Rita Kehl
Se a Maria Rita Kehl, uma pessoa reconhecidamente defensora da democracia, dos direitos humanos e comprometida com os melhores movimentos sociais do país, aponta e critica, legitimamente, um certo narcisismo nas/das posições identitaristas, a crítica da crítica, também legítima, não pode descambar para o “cancelamento” da psicanalista baseado em sua “herança genética” ou coisa e tal, sob pena de perder sua legitimidade política e epistemológica.
Fazer cessar o debate pelo silenciamento não é prática democrática
O fato de reconhecer que há um emprego político e epistemológico nefasto, por parte da direita, dos termos “identitarismo”, “identitarista” e similares, não quer dizer que todas as críticas às posições baseadas nas identidades, reivindicadas ou assumidas, sejam infundadas. E estabelecer se o são ou não é parte do legítimo e necessário debate político e epistemológico.
Fazer cessar o debate pela deslegitimação (cancelamento/silenciamento) do interlocutor não é prática democrática. E nos faz lembrar a história do rei que manda matar o mensageiro da notícia que não o agrada.
Luciano Mendes (UFMG) e Natália Gil (UFRGS) são editores da coluna Cidade das Letras do Brasil de Fato MG.
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