Por Cleiton Donizete Corrêa Tereza
A sala estava cheia, não esperava; escura, como esperado. Durante a exibição do filme, em momentos pontuais, eu observava o público. Ocupando uma posição quase central, olhava para esquerda, para a direita, esticava o pescoço para frente, aguçava os ouvidos para escutar os de trás. Por mais que esteja compreendo melhor a pluralidade da população ribeirão-pretana, ainda ecoam as afirmações: “muito conservadora e elitista”.
Chegava até a me perguntar: será que eles sabem qual a temática do filme? Será que em algum momento um extremista de direita vai se levantar e dizer impropérios? Nada disso. “Ainda estou aqui” foi assistido com atenção e respeito, inclusive por um garotinho de dez ou doze anos sentado ao meu lado. Quando a sessão terminou muitas pessoas estavam visivelmente emocionadas, algumas choravam. Em sua maioria pessoas idosas e brancas. Quase não havia negros, eu era uma das exceções. Pensei em puxar palmas enquanto subiam os créditos, lembrei que ainda estou chegando na municipalidade, recuei.
De volta para casa, eu, minha filha e minha esposa conversamos animados sobre o filme e a experiência de assisti-lo no cinema (no caro cinema, com cadeiras barulhentas, do higienizado e pouco funcional shopping). No som do carro, no repeat, o Tremendão: “É preciso dar um jeito meu amigo, é preciso dar um jeito, meu amigo!”.
Ao menos desde Walter Benjamin e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), existem discussões profícuas sobre o potencial verdadeiramente crítico e transformador do cinema, capaz de contribuir com a educação e a conscientização do povo. Porém, no sistema capitalista, a produção e expansão cinematográfica integra o circuito da indústria cultural.
Não é novidade alguma lembrar que o cinema é uma arte cara, exige tempo, estrutura e uma quantidade enorme de profissionais para acontecer. Salvo algumas exceções notórias, em que a proposta de transgressão está também na forma direta e nas ausências, cinema exige volumosos recursos, em geral bancados pelos Estados e empresas.
Compreendido isso, não há de se estranhar que “Ainda estou aqui” seja resultante de dinheiro de grandes empresas capitalistas e que carregue, inevitavelmente, até pela origem da história, elementos de classe e raça.
Só para recordar, mesmo Marighella, de Wagner Moura, com orçamento de R$ 10 milhões, não teve o mesmo apoio e atenção. Para além de elementos técnicos discutíveis, as barreiras envolveram o fato de retratar a história de um político revolucionário negro que, diante da ditadura Cívico-militar brasileira, fez a opção pela luta armada. É demais para os parâmetros de uma cosmovisão democrática burguesa.
Mesmo considerando tudo isso, “Ainda estou aqui” é um filme notável, especialmente na quadra histórica que estamos vivendo. Explico.
Um dos assuntos que mais estudei na minha vida foi a ditadura Cívico-militar brasileira. Cívico-militar para explicitar que houve uma articulação entre as forças armadas e porções reacionárias da sociedade civil, com destaque para setores religiosos, do empresariado e da classe média.
Li autores de matrizes diversas, tanto em termos analíticos quanto em relação à linguagem: historiadores, jornalistas, romancistas, memorialistas. Sem contar as longas horas analisando músicas de contestação, assistindo documentários e outros filmes sobre o período. Além disso, levantei e examinei documentos enquanto fontes primárias e secundárias, ou seja, tive acesso a documentos da época, como atas, correspondências, registros cotidianos que nenhum pesquisador ainda havia estudado, também produzi materiais de pesquisa, especialmente por meio de entrevistas.
E durante todos os anos em que lecionei na educação básica ministrei aulas, apresentei conteúdos, formulei atividades pontuais e projetos estendidos. Levei estudantes a palestras com pessoas que escreveram sobre o período ou vivenciaram movimentos e iniciativas de contestação e resistência. Também organizei e participei de atos políticos em defesa da democracia e de denúncia em relação às injustiças e horrores da ditadura
Memória do desastre da ditadura é eficaz no combate ao autoritarismo
Toda essa experiência acumulada enquanto professor, pesquisador e cidadão engajado, me permitem dizer, outra vez, que este filme, mesmo diante das contradições em termos de produção, financiamento e inserção na dinâmica da indústria cultural, é importante sim! Ainda mais se nos atentarmos para o momento delicado, em termos globais, que estamos vivendo, com aceleração da exploração capitalista aliada ao crescimento do fascismo.
É preciso sensibilizar e conscientizar
Afinal, uma das formas mais eficientes de combate político ao autoritarismo é justamente manter viva a memória social dos seus desastres. Para tanto, é preciso que as pessoas sejam tocadas, não é somente uma questão de racionalidade, instruir ou demonstrar, mas de afetar, conscientizar por meio também das sensações, algo que o cinema continua sendo capaz de fazer e, assim, desencadear debates populares a respeito do tema e ações de contraposição às permanências autoritárias.
Quando saí do cinema, lembro de dizer que não tinha achado o filme impecável. Não tinha queixas a fazer. Roteiro, atuações, fotografia, figurino, trilha sonora, montagem, enfim, tudo muito bem encaixado. Redondinho, como diria um querido amigo cinéfilo. Mas não vislumbrava que poderia vencer grandes indicações e prêmios. Errei, felizmente.
Porém, uma cena escapa, um tanto pelo caráter simplório, um tanto pelo significado profundo. Trata-se do milico que diz não concordar com o que estava acontecendo ao conduzir Eunice Paiva pelos corredores da prisão, enquanto ela, encarcerada, temia pela filha, pelo marido e ex-deputado federal Rubens Paiva, já desaparecido, pela família, pelos torturados, por tudo aquilo.
Realmente existiram militares que não concordavam, existem até aqueles que se opuseram e também foram perseguidos e até mortos. Entretanto, existiram aqueles que não concordavam e continuaram trabalhando para o regime.
Em umas das entrevistas que realizei, com uma professora aposentada que viveu esses anos de chumbo, a complexidade ficou evidente. Em um certo momento ela se recordou de uma jovem estudante universitária da família que, por integrar o movimento estudantil, foi interrogada e torturada psicologicamente pelos militares. Nunca mais se recuperou. Morreu jovem, em decorrências das complicações de uma tentativa de suicídio.
Porém, a mesma professora lecionou Moral e Cívica, a “menina dos olhos” da doutrinação militar na educação. E ela elogiava a proposta, com toda a questão da ordem e do patriotismo, ao relatar suas aulas. Pois bem, trazendo para o campo da educação, ainda está tudo aqui. Existem incontáveis dizendo “eu não concordo” e continuam fazendo justamente aquilo que se espera para depreciar a educação e a democracia, sobretudo quando algum dos seus mínimos interesses é colocado na mesa.
O que ainda circula entre nós?
Portanto, gostaria de finalizar chegando a uma das questões mais relevante que o filme nos ajuda a pensar: o que ainda circula entre nós? O que ainda se faz tão presente, além da ausência daqueles que não podemos enterrar ou reviver?
Há um consenso entre os estudiosos e também entre as pessoas de boa-fé, que se vivemos em uma sociedade racista, o racismo atravessa todos nós e temos tendências em reproduzi-lo; se vivemos em uma sociedade machista, as ideologias e atitudes patriarcais e sexistas nos alcançam, desde pequenos, e temos tendência em reproduzi-las; poderia seguir com muitos outros exemplos de violência e exclusão, mas acho que já ficou evidente.
O ponto aqui é: se vivemos em uma sociedade autoritária, em que os ideais fascistas nunca se dissiparam, desde a época de sua estruturação, pensamentos e comportamentos dessa ordem também nos afetam. Também podemos reproduzi-los, mesmo que seja em nome das divindades, da burocracia, da hierarquia, de gentileza indiferente, da estabilidade financeira, da produtividade, do status social, da lição correta e até mesmo nas expressões de transgressão e nas lutas pelo direito à diferença com preceitos inclusivos de igualdade.
Então está tudo perdido? Obviamente não, os movimentos e processos são dialéticos, também circulam pela sociedade sentimentos e ações de cooperação, solidariedade, alteridade, justiça. E o sucesso de “Ainda estou aqui” demonstra isso muito bem e contribui para impulsioná-los. Foi isso que senti naquela sala de cinema e continuo afirmando.
Cleiton Donizete Corrêa Tereza é professor Doutor do Departamento de Educação, Informação e Comunicação (DEDIC) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP). Foi professor de História nas redes municipal de Poços de Caldas e estadual de Minas Gerais por quase duas décadas. É especialista em História Contemporânea (PUC Minas), especialista em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF), mestre e doutor em Ciências Humanas (Diversitas-FFLCH-USP).
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—Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal