Por Luciano Mendes
Acordamos cedo, pois o recado era o de que quem chegasse depois das oito encontraria a porta fechada. Chegamos nem muito cedo nem muito tarde, apenas a tempo de participar da famosa Rabada do Xandão. Digo participar, porque a Rabada do Xandão não se trata apenas de comida, mas de um verdadeiro acontecimento gastronômico-cultural do carnaval de Recife. Lá estávamos quase trinta pessoas, recepcionados muito amavelmente pela Ana e o Alexandre, um casal amigo da UFPE.
A rabada, quero dizer, a comida e que tais, estava ótima. E realmente, termina as 8 horas, bem a tempo de partir para o Centro Histórico para acompanhar a partida do Galo. Ah!, desnecessário dizer que gente houve que chegou as 8 e que, da comida, pôde apreciar apenas o cheiro!
A turma, bem comportada, alegre e simpática, guiada pelo Xandão, foi se postar numa travessa, bem ao lado de onde passaria o cortejo do Galo. Calor, cheiro de “churrasquinho de gato”, muita água, cerveja e, sobretudo, muiiita gente! De todos os cantos do mundo! A demora foi grande, mas valeu a espera. A passagem do Galo é mesmo uma festa… e ainda bem que não é de madrugada! Cores, cores, cores! Encontros mil, e o sol a abrilhantar as fantasias todas.
Festa permite que multidão de todo o mundo se divirta e subverta
E lá fomos nós, tendo o Xandão como guia, de corpo e alma. Passou um, dois, três trios alegres e, no quarto, pegamos carona.
Água, cerveja e… xixi, claro. Com o sol quente, o cheiro que exalava das ruas era acentuado. E não era bom. E logo descobrimos o porquê. Não havia estrutura alguma de banheiros químicos para suportar aquela multidão. Assim, além do cheiro, tivemos que caminhar um bom bocado para achar um banheiro privado, mas nem tanto privativo. E criatividade de pobre para ganhar uns bons trocados: a pessoa descobriu a passagem do esgoto, abriu um buraco e colocou um vaso sanitário em cima. E cercou. A cada pessoa que usava ele jogava um balde d’água. Bem bolado, não?
Aí, de repente, como é usual acontecer no Recife, o sol deu lugar a uma nuvem espessa e, quase imediatamente, caiu uma chuva forte, para lavar o corpo e a alma. Mas, acontece que o principiante aqui não estava preparado para ela, a chuva. E, todo molhado, lá se foi o velho celular que estava aguentando umas poucas e boas desde que a Samsung me deu o golpe do Flip 6! Coisa de principiante que não imagina que, para seguir o Galo, é preciso estar preparado para todas as intempéries!
Carnaval e utopia
E por falar em golpe das transnacionais a um pobre consumidor brasileiro, a impressão que tive, ao passar pelas ruas, atrás do Galo, é que estas se transformaram em verdadeiros corredores de uma longa e intensa feira, em boa parte dominada pelas betes e por empresas graúdas.
Há, é claro, um sem número de vendedores ambulantes e criativos moradores que transformam os espaços privados e comerciais, tipo oficina mecânica e estacionamentos, em “camarotes” mais ou menos sofisticados para que as pessoas possam assistir à passagem do cortejo sem se misturar com a multidão. E, fiquei pensando, com acesso a banheiros mais ou menos dignos! Só sei que, ao passar por aqueles corredores todos, me senti como o recheio de um imenso sanduíche.
O carnaval é, pois, um grande acontecimento cultural, festivo e… econômico, por suposto. Passando pelas ruas e corredores, não é raro a gente sentir ensanduichado pela multidão e pelos vários modos de empresariamento da festa.Mas isso, é claro, não é um fenômeno do Recife e, muito menos, do Galo da Madrugada. E não é de agora. É parte da transformação do carnaval num grande espetáculo da indústria cultural. Isto incomoda, claro, mas o carnaval é muito mais do que indústria cultural.
É uma espécie de “utopia de festa democrática”, como diz a Conceição Evaristo. E é isto que possibilita que as gentes, uma multidão incontável de pessoas, de todo o mundo, se divirta, subverta os cânones e faça da Rabada do Xandão uma boa entrada para uma grande festa, regada a alegria, camaradagem e muito samba no pé (ou apenas na cabeça mesmo!).
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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—Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal