Por Luciano Mendes
Poucas pessoas tiveram (e têm) um tão intenso e longevo impacto em minha forma de pensar a educação quanto o professor Miguel Arroyo. Quando eu o conheci, na UFMG, como aluno de Pedagogia, em 1984, Miguel, como a ele me refiro quase sempre, já havia voltado dos EUA, onde concluíra sua tese de doutorado, e estava às voltas com a defesa e elaboração de sua tese de professor titular, defendida em 1985. Apesar de não ter contato com ele, diretamente, já ali eu começara a ler e, depois, ouvir as coisas intrigantes daquele espanhol impactante, sempre falando e escrevendo de forma apaixonada.
Nos anos seguintes, passei a ler e a estudar com afinco quase tudo que ele escrevia, e tive a sorte de ter sido aluno dele no mestrado, numa disciplina sobre a educação e os movimentos sociais, se não me engano, em que ele a cada aula lia uma parte do livro do historiador inglês Edward Palmer Thompson, e comentava conosco. Mas, neste tempo, eles, Miguel e Thompson, já eram meus “velhos” conhecidos!
A leitura dos textos do Miguel, publicados nas revistas Educação & Sociedade e na revista da Associação Nacional de Educação (ANDE) e, sobretudo, de sua tese de professor titular teve, em mim, um impacto avassalador.
Recuperar a importância da escola como agência educativa disputada tanto pelo capital quanto pelos movimentos sociais e operários disruptivos e, ao mesmo tempo, relativizar o lugar da educação em sua forma escolar, parecia-me, naquele momento, como o é hoje, uma estratégia fundamental. Miguel nos admoestava (esta é a melhor palavra, me parece, pois se ele saiu da igreja a igreja nunca saiu dele completamente!) a não confundir a EDUCAÇÃO com a ESCOLA, e buscava nos mostrar o quanto as lutas sociais são educadoras e, por isso mesmo, continuamente reprimidas pelas forças da ordem.
É preciso saber, claro, que ele não estava sozinho neste modo de pensar. Muitas outras pessoas na Faculdade de Educação da UFMG, por caminhos parecidos ou diversos, vinham na mesma toada. Basta lembrar que a tese de doutoramento da Eliane Marta Lopes, defendida em 1984, sintomaticamente teve por título Colonizador-colonizado: uma relação educativa no movimento da História.
Mas foi Miguel quem, por meio de orientações de dissertações e teses e de sua aproximação cada vez maior com o movimento sindical das professoras que se organizava, da gestão pública da educação em muitos municípios brasileiros e dos movimentos sociais do campo e da cidade, teve energia e persistência para fazer desta, uma tese fundamental no campo educacional brasileiro.
Das leituras iniciais de Thompson, no final dos anos de 1970, às leituras atuais de Paulo Freire, para dizer de duas referências fundamentais no pensamento de Miguel, há uma nítida continuidade de um modo de pensar a educação e, por suposto, a formação humana a partir do primado da experiência. Há alguns anos, ouvindo o historiador alemão Hans Ulrich Gumbrecht alinhando Thompson e Paulo Freire na mesma fiada de uma “pedagogia da presença”, em uma conferência em Mariana, pensei o quanto esta já era uma importante chave de leitura usada Miguel muito tempo antes, ainda que as palavras não fossem exatamente as mesmas.
Intenso e longevo
O pensamento de Miguel é intenso e longevo. Há quase cinco décadas ele vem impactando o pensamento educacional brasileiro. E uma das faces mais produtivas desse pensamento e de seu modo de se posicionar no debate, é justamente as paixões e polêmicas que ele mobiliza. Nos anos 80, não foram poucas as vezes que, no auge dos movimentos de afirmação da escola, ele chamava a nossa atenção para não “irmos com tanta sede ao pote”. A escola era e continua sendo importante, ele dizia, mas não mais do que as lutas sociais que defendem a vida, as melhores condições de trabalho e de moradia, por exemplo.
Não adianta oferecer escola e precarizar as condições de vida dos trabalhadores
Foi também um dos primeiros a reagir, com veemência, à ideia de que a formação de professores é a pedra de toque das políticas educacionais de qualidade. O fez, também, ao nos lembrar que a escola não é o umbral, a porte de entrada para os direitos, e sim um direito, como os demais, negados às classes trabalhadoras neste país.
Não adianta, por isso, oferecer escola e precarizar as condições de existência real das classes trabalhadoras, impedindo que estas usufruam da cultura, da comida e dos saberes produzidos. E, mais recentemente, tem se batido muito contra a redução do direito à educação ao direito à aprendizagem escolar.
Não é, obviamente, intento deste texto fazer qualquer tentativa de síntese sobre a trajetória e o pensamento de Miguel Arroyo. O objetivo é lembrar, neste momento em que ele completa 90 anos, de sua importância e de seu impacto na educação brasileira.
Militante, buscou sempre pensar a educação em suas faces mais amplas, como políticas e dinâmicas de formação do humano, o que implicou, certamente, em trazer para o centro da cena, as faces perversas, limitadas e limitantes da formação recebida pelas pessoas ao longo dos tempos.
Miséria, desigualdade, violência, repressão, censura, concentração da terra e da renda, a destruição do mundo… são faces perversas do mesmo projeto que destrói salários e carreiras das professoras, que intensifica o tempo de trabalho das pessoas que trabalham na escola, que dificulta a elaboração de projetos de futuro para nossas crianças e jovens.
Tudo isto está no cerne do pensamento educativo, social e cultural de Miguel Arroyo, e são suas potências analítica e política que nos fazem lê-lo hoje com tanta atenção quanto líamos nos anos de 1980. É um pensamento necessário e atual sobre a democracia como direitos de inventar direitos, e que isto seja para todas as pessoas!
Saber que, ao completar 90 anos, Miguel continua serelepe, criativo e feliz, nos convidando a pensar e criar modos de melhorar a vida de todas as populações humanas e não humanas que habitam o planeta, é, sem dúvida, motivo de grande alegria.
Salve! Salve! Miguel Gonzales Arroyo!!! Vida longa e bela para ti!
P.S.: Miguel Arroyo será homenageado no dia 20 de março, às 15h, na Faculdade de Educação da UFMG, por ocasião de seu aniversário de 90 anos.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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—Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal