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“Adolescência”, a série: onde estamos errando?

Precisamos aprender com quem vivencia mais de perto a aceleração dos tempos, especialmente sobre às culturas juvenis

Por Natália Gil

A série “Adolescência”, lançada há menos de um mês pela Netflix, tornou-se rapidamente um fenômeno de audiência. A trama se desenrola em torno da investigação acerca dos motivos que teriam levado um menino de 13 anos a matar uma colega de escola na Inglaterra.

Questões como bullying, cibercrime, sociabilidade juvenil e dificuldades de relacionamento entre pais e filhos são alguns dos temas centrais na história. O fato é ficcional, mas dialoga com muitos casos reais que têm sido noticiados nos últimos anos. Bem escrito, bem dirigido, bem pensado: não é difícil entender porque a série vem recebendo muitos elogios.

No que se refere à educação, como temática, muitas são as questões suscitadas e, na minha opinião, a série tem justamente o mérito de nos fazer parar um minuto para refletir sobre o tema, se abalar com a dureza da história e se afetar com o que há de fragilidade humana em cada um dos personagens principais.

A cada breve intervalo no desenrolar inevitável das ações que se seguem ao crime – para que o pai, o investigador ou a psicóloga possam respirar alguns minutos, deixar rolar uma lágrima, retomar a energia e voltar ao que deve ser feito – a gente pode respirar um pouco também. A necessidade que eles têm (e nós também) de respirar fundo e de se refazerem depois do impacto emocional das circunstâncias nos permite lembrar que seguimos sendo seres humanos. 

Papel dos adultos

Muito se poderia falar sobre a várias dimensões presentes na bem construída narrativa, mas vou focalizar aqui apenas a questão do papel dos adultos na educação das novas gerações.

Muitas pessoas têm relatado sentir-se chocadas ao saber sobre o perigo da incursão dos jovens nas redes sociais. Especialmente quando tal relato vem de pessoas que convivem com adolescentes isso me parece um importante problema.

Eu ainda não tinha ouvido falar dos “incels”, mencionado na série, mas já faz uns dois anos tinha recebido dos adolescentes aqui de casa a explicação do que significa “red pill” e tinha, portanto, tido ocasião de compreender e formular minha própria opinião sobre o fenômeno ao mesmo tempo e em colaboração com pessoas 30 anos mais novas do que eu.

A visão tradicional de educação segundo a qual os adultos entendem do mundo e devem ensinar às crianças e adolescentes como pensar e agir, se é que já funcionou em alguma época, certamente não serve para os dias em que vivemos.

Precisamos aprender sobre o que se passa atualmente com quem vivencia mais de perto a aceleração dos tempos, especialmente no que se refere às culturas juvenis, e podemos nos oferecer, humildemente, para partilhar não um entendimento pronto e acabado, mas as ferramentas de reflexão que a experiência de vida pode ter nos dado ao longo dos anos.

Só que não basta termos muita idade para sermos capazes de refletir sobre situações e temas novos. É preciso que tenhamos dedicado energia e tempo para aprendermos a observar o que se passa e a refletir a partir da experiência. E, nesse sentido, minha impressão é que tem muito adulto hoje em dia que não é capaz de fazer isso. Então, como vai conseguir educar?

A série, de muitos modos, nos suscita a perguntar: qual o papel dos adultos na educação dos adolescentes? No caso de pais e mães, bastaria garantir casa, comida e roupa lavada?

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Peço desculpas pelo spoiler (se preferir, pule diretamente para a leitura do último parágrafo!), mas é importante dizer que, na série, não há um contexto de pobreza extrema, não se trata da noção tão comum quanto preconceituosa de “família desestruturada”, não há desamor na família. O que fica esboçado, por outro lado, é o silêncio, o pouco que se sabe sobre o que gostam, o que pensam, o que anseiam, o que temem as pessoas que convivem nos mesmos espaços.

Convidar o filho para comer uma batata frita e se dispor sem julgamento a experimentar o molho de gosto duvidoso que o filho diz gostar é uma imagem de síntese para nos alertar acerca do que talvez esteja faltando fazermos na educação de nossos filhos.

E no caso dos professores, qual afinal seu papel na educação dos adolescentes? Seria apenas o ensino de conhecimentos formais relacionados às matérias escolares? O modo caótico como aparece retratada a escola na série me pareceu estereotipado, mas não tenho referências para saber o quanto esse cenário de caos se aproxima ou não do cotidiano de uma escola inglesa.

De qualquer forma, lembrando mais uma vez que se trata de uma narrativa ficcional, as cenas têm o efeito de nos levar a pensar nesses adultos que gritam o tempo todo com os alunos que, a seu turno, debocham deles. Onde está o vínculo interpessoal? Como podemos conceber um processo educativo que não se dá no encontro entre pessoas que devem, necessariamente, investir na construção da relação.

É de relação entre pessoas que se trata quando a questão é educação. E os professores de adolescentes são, antes de tudo, adultos de referência para seus alunos e deveriam ser capazes, como já mencionei acima, de mobilizar sua experiência de vida (e não apenas seu conhecimento científico) para partilhar reflexão sobre os mais diversos temas (entre os quais, mas não apenas, a ciência, claro!). 

É preciso termos redobrada atenção em tempos nos quais a noção de “qualidade do ensino” se encontra refém de avaliações objetivas e padronizadas, em que o foco está absurdamente restrito aos conhecimentos que se pode provar terem sido aprendidos pelo acerto nas questões de prova, muitas das quais questões de múltipla escolha.

Como aceitar a redução da suposta boa educação escolar à obtenção de boas notas?!

Esse é um tema mais periférico no enredo da série, mas conscientemente presente na opção feita sobre como contar essa história e muito importante para quem se interessa por educação. Não são raras as vezes em que os personagens mencionam sobre os adolescentes – tanto quem assassina quanto quem comete bullying – que são ótimos alunos, muito inteligentes e que tiram boas notas.

Ora, como aceitar a redução da suposta boa educação escolar à obtenção de boas notas?! Humilhar colegas, maltratar pessoas, ser incapaz de interagir com alguém do sexo oposto não são traços de personalidade e sim resultado do processo educativo, inclusive daquilo que se faz na escola. Considero que a resposta sobre onde estamos errando na educação dos nossos jovens passa por essa reflexão.

Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB – História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.

Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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