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Entre likes e views: disputas narrativas e formação docente

Extrema direita, Escola Sem Partido, militarização das escolas e a exposição em redes sociais distorcem os debates

Por Marcelo Gomes da Silva

A história da profissão docente no Brasil desnuda uma realidade de desafios, dificuldades e enfrentamentos por parte das pessoas que escolheram seguir esse caminho.  Do ponto de vista estrutural, podemos observar uma narrativa de culpabilização dos professores pelos maus resultados educacionais.

Convivemos com uma representação cunhada sobre a premissa da docência como missão ou apostolado cívico, internalizamos subjetivamente essa função, fato que corrobora ainda mais para a sensação de culpa pelos fracassos.

A formação de professores caminhou de forma muito lenta no Brasil, tal qual a própria escolarização. O processo só não foi mais lento e danoso devido à ação da sociedade civil, dos agentes sociais e das pessoas envolvidas com os processos educacionais. Em suma, se temos hoje uma estrutura organizacional mínima da educação, foi graças à luta de homens e mulheres que com muita dificuldade se dedicaram à instrução da população.

Dito isso, o mínimo que se espera da sociedade é um reconhecimento do nosso trabalho. No entanto, são inúmeros os casos de desrespeito a professores e professoras. Descaso do poder púbico em todas as esferas, descaso institucional, das famílias e, em menor proporção, dos próprios alunos.

Formação docente e piso nacional da educação

A criação de um piso nacional do magistério é algo muito recente, mesmo assim, o que era para ser um piso virou teto, e, no país, cerca de 700 municípios não pagam o valor definido por lei, como denunciado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).

Além das intensas e constantes lutas por melhores condições de trabalho, por melhorias salariais, por direito à licença para estudos e formação continuada, pelo cumprimento de metas estabelecidas por lei, temos que lidar com o desrespeito e descaso da própria sociedade. Há um conjunto de fatores que estão causando o adoecimento dos professores e das professoras.

A falta desses profissionais no mercado de trabalho já é uma realidade e, a meu ver, não se trata apenas de uma questão de formação. Trata-se, também, de uma “distorção” narrativa resultado de disputas ideológicas. Fundamentalmente, nossa profissão enfrenta uma crise política, que também é subjetiva, pois a representação social do papel do professor mudou.

Likes e views

As ideias autoritárias e o avanço da extrema-direita no mundo têm colocado em evidência a perseguição sobre os professores. Somos tratados como inimigos. Junte-se a isso, movimentos como o Escola Sem Partido, a militarização das escolas e a exposição de narrativas em redes sociais que distorcem os debates, tiram as falas dos contextos e expõem a figura docente de forma falaciosa.

A viralização das calúnias é algo extremamente preocupante, veja o caso do suicídio do ex-reitor da UFSC após uma acusação caluniosa que afetou profundamente sua reputação.

A viralização das calúnias é algo extremamente preocupante

Mata-se nossa reputação, pois assim atinge aquilo que temos de mais valoroso, a subjetividade construída ao longo da história sobre a importância de nosso papel. A distorção histórica da representação de nossa função faz com que desacreditemos de nós mesmos. E a crença em nossa capacidade transformadora, de transformação do outro e da sociedade é parte essencial de nossa atuação docente.

Precisamos nos preocupar, cada vez mais, com a produção das narrativas, pois elas também afetam a nossa existência, seja enquanto profissionais, seja individualmente, em nossa subjetividade.

O afastamento de um aluno da UnB, que atua como youtuber e filmava as aulas para expor os professores em troca de likes e visualizações, é um exemplo concreto do desafio que temos pela frente. Os perfis dos alunos das universidades mudaram. Todo mundo concorda que as universidades são lugares onde deve prevalecer a diversidade, o contraponto, o debate e a convivência de contrários. No entanto, é preciso colocar um limite pedagógico em certas ações.

Todo professor precisa ter a dimensão da responsabilidade de sua fala, mas também os alunos e alunas precisam incorporar essa responsabilidade. Principalmente quem está nos cursos de licenciaturas e serão futuros professores.

É preciso cuidar da formação política dos estudantes, no entendimento da construção de uma responsabilidade sobre sua profissão. A banalização da exposição do outro, em busca de viralização e likes, tem grande relevância no processo de formação dos sujeitos. Precisamos reafirmar o papel da universidade neste sentido.

Marcelo Gomes da Silva é professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus–BA) e coordenador da região nordeste do Portal do Bicentenário: 200 anos de escolas públicas no Brasil.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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