No coração dos Andes, onde o céu se encontra com a Terra, os povos originários guardam uma sabedoria milenar: o Buen Vivir – ou Sumak Kawsay, em quéchua. Em fevereiro tivemos uma entrevista da Nación Pachamama com Fernando Huanacuni*, aymara, jurista, ativista boliviano, pesquisador e defensor dessa filosofia, na qual ele falou sobre as bases do Buen Vivir e porque é tão importante manter essa flama viva nos tempos que vivemos. Aqui trazemos um pouco do que ele compartilhou nesse encontro tão nutritivo.
Huanacuni conta que o Buen Vivir foi guardado por gerações nas canções, nos tecidos, nas cerimônias e no cotidiano dos povos indígenas. “Os Abuelos nos ensinaram que a vida é um tecido sagrado, onde cada ser tem seu lugar e sua importância”, diz ele.
O Buen Vivir é guiado por 13 princípios que refletem a sabedoria ancestral. Entre eles, destacam-se:
1. Saber Pensar: Cultivar pensamentos positivos e construtivos.
2. Saber Escutar: Ouvir a natureza, os outros e a si mesmo.
3. Saber Dar e Receber: Praticar a reciprocidade (Ayni), base da harmonia comunitária.
4. Saber Amar e Ser Amado: Reconhecer que o amor é a força que une todos os seres.
5. Saber Sonhar: Projetar um futuro de equilíbrio e justiça.
Esses princípios nos lembram que a vida é um processo contínuo de aprendizado e conexão. “Não estamos sozinhos. Somos parte de um tecido maravilhoso chamado vida”, afirma Fernando. Os povos andinos não veem o ser humano como o centro do universo, mas sim como parte de um equilíbrio cósmico que envolve todas as formas de vida e a própria Terra. Para Huanacuni, a relação com a Pachamama, a Mãe Terra, é o pilar central de tudo. “Somos filhos da Pachamama, e é nela que encontramos a verdadeira essência de quem somos.”
Huanacuni destacou que não há separação entre o mundo espiritual e o mundo material na cosmovisão andina: “Nossa espiritualidade está em tudo. Está na relação com a terra, com as montanhas, com as águas, com os ventos. A Pachamama é a nossa Mãe, e nos ensina a viver em harmonia com Ela.”
Durante nossa conversa, um ponto que se destacou foi a importância de escutar a Terra. Huanacuni nos lembra que, em muitos aspectos, nós, como sociedade, nos afastamos tanto da Terra e da natureza que não conseguimos mais escutá-la. “A Terra fala com a gente, mas nós não ouvimos. Estamos tão imersos em nossas próprias distrações que nos esquecemos de ouvir os sons que vêm de Pachamama.” Para ele, a reconexão com a Terra passa pela escuta ativa, pelo reconhecimento de que a natureza está sempre nos enviando sinais, sempre nos orientando.
A destruição ambiental, o desmatamento e o desequilíbrio climático não são fenômenos isolados ou acidentes, mas consequências diretas da desconexão espiritual do ser humano com Pachamama. Huanacuni descreve como os povos andinos, há milênios, entenderam que a saúde da Terra está intrinsecamente ligada à saúde das comunidades e dos indivíduos. “Quando cuidamos da Terra, cuidamos de nós mesmos. Quando destruímos a Terra, nos destruímos também.” A urgência de retornar à sabedoria ancestral não é apenas uma questão ideológica, mas de sobrevivência.
Mas como podemos aplicar esses ensinamentos no mundo contemporâneo?

A resposta de Huanacuni é clara: “Precisamos, acima de tudo, recuperar nossa capacidade de cuidar. Cuidar da terra, das comunidades, dos rituais e das tradições que nos conectam ao divino”. Ele explicou que a verdadeira cura só será possível quando reconhecermos a interdependência entre todas as formas de vida e agirmos coletivamente para restaurar este equilíbrio perdido.
“A conexão com a Terra não é algo opcional”, afirma. “É algo vital. A cura do Planeta está em nossas mãos, e começa com a mudança de nossa consciência, de nosso modo de viver.” Para ele, a mudança deve começar dentro de cada um de nós, mas deve se estender a toda a coletividade, através de ações que vão desde o resgate das tradições espirituais indígenas até a prática diária do cuidado com o meio ambiente. “A transformação precisa ser coletiva, porque o desequilíbrio afetou a todos nós. Não podemos mais continuar vivendo como se estivéssemos sozinhos.”
Huanacuni também falou sobre a necessidade de educação espiritual e cultural, de resgatar o conhecimento ancestral que foi perdido ou marginalizado ao longo da colonização e da globalização. Ele propõe que a educação deve voltar a ser integrada à terra, aos ritmos da natureza, e ao respeito pelas culturas originárias. “O que falta na nossa educação é o sentido de pertencimento à Terra. Precisamos ensinar as futuras gerações a se verem como parte do todo, como parte de Pachamama.”
Ao terminar a conversa, a mensagem que fica é que a transformação que tanto buscamos vem da maneira como vivemos todos os dias. Huanacuni disse: “A espiritualidade é uma prática diária. É como você se relaciona com a Terra, como você cuida do seu próximo, como você respeita a Vida.”
Fernando sugere práticas simples para incorporar o Buen Vivir no cotidiano:
− Agradecer: Começar o dia com gratidão à Pachamama e ao cosmos.
− Cuidar da Natureza: Plantar uma árvore, cuidar de um rio ou simplesmente observar a vida ao redor.
− Praticar a Reciprocidade: Dar e receber com generosidade, seja em ações ou em palavras.
− Celebrar a Vida: Participar de cerimônias e festividades que honram os ciclos da natureza.
O Buen Vivir não é apenas uma herança do passado, mas um legado para o futuro. “Nossa responsabilidade é transmitir essa sabedoria às novas gerações, para que vivam em harmonia com a Mãe Terra e entre si”, conclui Fernando. “É o momento de nos reconectarmos. É hora de escutar a Terra, é hora de curar.” Que possamos ouvir esse chamado como Consciência Pachamama e construir um futuro onde a harmonia e o respeito sejam a base da convivência entre tudo e todos.
Confira a íntegra da entrevista
* Fernando Huanacuni foi ministro das Relações Exteriores da Bolívia no mandato de 2017 a 2018; Diretor de Cerimonial e Implementação no Ministério das Relações Exteriores da Bolívia, a partir de 2008; Participou da equipe de design do currículo do Curso de Direito Avelino Sinani – Elizardo Perez; Foi expert em Cosmovisão e Filosofias Ancestrais dos povos e comunidades indígenas para o Ministério da Educação e Cultura da Bolívia; Pesquisa a história e a cosmovisão ancestral dos povos indígenas; Promove a reconstrução da identidade ancestral das nações indígenas originais; Leciona sobre o valor do conhecimento ancestral e a motivação para o retorno ao pensamento lógico e às práticas comunitárias; É autor do livro Vivir Bien/Buen Vivir, Filosofía, Políticas, Estrategias y Experiencias de los Pueblos Ancestrales.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.