“É pela memória que se puxam os fios da história… O que parecia esquecido e perdido logo se revela presente, vivo, indispensável…” Octavio Ianni
Na primeira vez que estive em Buenos Aires, recém havia mudado radicalmente de vida. Terminara um longo namoro e saíra do emprego com a ânsia de viver aquilo que não havia vivido. Tudo isso porque no centro do peito, não só havia brotado, mas ocorrido uma erupção que deu vazão a uma sede imensa de descobrir quem sou. E, especialmente, de dar um sentido à caminhada que não fosse só trabalhar, casar e ter filhos.
Era tudo muito abstrato, pois não sabíamos onde e para que, mas seria a primeira palestra que daria sobre a Nación Pachamama e ainda em espanhol. Chegamos à cidade com os olhos de mulheres descobridoras do mundo. Fomos caminhar à noite pelas ruas agitadas e cheias de vida e resolvemos ir até onde ocorreria o tal do evento.
Chegamos e tinha uma multidão de jovens dentro e fora do prédio. Entramos e havia um café e um salão cheio de quadros com imagens de muitos revolucionários da América Latina. Na parede principal, em cima de um sofá vermelho, a imagem imensa de Che Guevara. Lembro da sensação que tive ao entrar naquele espaço: a de estar em casa, emocionada vendo imagens tão distantes de nós, brasileiros.
Aquele lugar era a Universidade das Mães da Praça de Maio. Me explicaram que foi criada para que a memória e os sonhos de todos os filhos e filhas mortas e desaparecidas na ditadura civil e militar argentina seguissem vivendo. Eram jovens como eu, cheios de sonhos, desejo de aventuras, mas, especialmente, de ganas para lutar por um mundo melhor.
Me emocionei por estar naquele lugar e no dia seguinte poder participar na Praça de Maio, como há anos ininterruptamente aquelas mães e avós fazem, do protesto pelos mortos e desaparecidos.
Foi um imenso presente que a vida entregou, não só por me sentir em casa, mas, especialmente, por mobilizar intimamente uma memória que não é só minha, mas de todos os latino-americanos. A memória perdida que carrega em si uma dignidade iluminadora.
Os anos de chumbo na América Latina
Após o Paraguai, o Brasil foi o segundo país da América Latina a sofrer com o golpe civil-militar. Foi o início ao que chamamos de anos de chumbo. Tempos marcados por perseguições às liberdades, aos nomes e famílias de quem não estava alinhado com o regime e/ou representava qualquer suspeita de discórdia e ameaça. Isso incluía ter um livro proibido, um amigo suspeito ou um sonho de mudança.
Passamos pela Comissão da Verdade e mesmo assim o Estado brasileiro se manteve ausente e não julgou os crimes cometidos naquele período. Se puderem, acessem os depoimentos dos sobreviventes da tortura para sentir a ferocidade de quando um sistema deseja controlar ações, pensamentos e SONHOS.
É certo que todos já nos demos conta da onda de fascismo que ressurgiu e da perseguição ao diferente. É escandalosamente assustador o que vem ocorrendo nos Estados Unidos, suposto país das liberdades (burguesas, obviamente), na Argentina e Brasil, para dizer dos mais próximos e evidentes a nós.
Em 1º de abril de 1964, num dia qualquer, como hoje, os militares tiveram sucesso na sua empreitada e tomaram o poder no nosso país. Depois dele, um tsunami foi abatendo outros países e criando uma rede de controle, perseguições e torturas que destruíram pessoas, famílias e o coração de povos.
O Brasil foi cruel na ditadura e mesmo que não tenhamos um parente que tenha passado pelos porões escuros do DOI-Codi, não significa que nada passou e que a verdade não necessita vir à luz.
A Argentina, com suas mães e avós, assim como no Chile e Uruguai, fizeram a revisão histórica desse período e julgaram seus torturadores, assumiram uma certa responsabilidade na reparação. No Brasil não! E na memória coletiva é como se nada tivesse acontecido. É um vácuo danoso à nossa dignidade e atroz à inteligência e à sensibilidade desta nação.
Hoje é um dia de conscientização
Quiçá seja o espírito profundo da vida que ansiou que o nome de Eunice Paiva fosse conhecido por todos os brasileiros e que justo a história dessa mulher ganhasse o Oscar. Quiçá esse espírito esteja desejando a reparação dessa humanidade quase perdida ao indiciar, pela primeira vez, militares envolvidos na tentativa do golpe que recém passamos. Isso é histórico!
Somos brasileiros, latino-americanos e seres humanos. Aquelas Mães e Avós da Praça de Maio também são parte ativa da memória do nosso povo, assim como todos os mortos e desaparecidos em todos os países da amada Pátria Grande.
Hoje é um dia de conscientização e não se pode permitir nenhuma comemoração. Haveria de ser feriado nacional. Um dia onde a memória volta à tona não para vivermos aqueles anos de chumbo, mas para umedecer o coração para que aquilo NUNCA MAIS volte a acontecer.
Somos herdeiros e herdeiras de muitos sonhadores e sonhadoras, e há que manter uma missão íntima para perpetuar a memória deles, mas especialmente do sonho de revolução.
Que exista pão, trabalho e sonho para todas e todos.
Por um dia de memória, venceremos!
* Astreia Mendizabal, maestra da Escola Solar Andina.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.