A crise estrutural na educação pública brasileira, especialmente no campo e em territórios tradicionais, ganhou contornos imensuráveis diante dos retrocessos impostos a partir do golpe parlamentar-jurídico-midiático que destituiu a presidenta Dilma em 2016. Um evento que marcou o início de um ciclo de retrocessos que reconfiguraram as políticas educacionais, priorizando a austeridade fiscal, a terceirização de serviços e o abandono de programas voltados à inclusão sociocultural.
No período pós-golpe, sob os governos Temer e Bolsonaro, assistimos um desmantelamento, precarização e desmontagem acelerada de conquistas sociais, como o enfraquecimento do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), o desmonte de políticas de educação do campo e o avanço de modelos educacionais alinhados a interesses mercadológicos com o avanço reacionário nos Estados federados. A educação, antes entendida como direito e instrumento de emancipação humana, passou a ser tratada como mercadoria, para alguns inacessível, com projetos que desprezam a participação popular e impõem padrões homogeneizantes, distantes das necessidades pedagógicas e culturais de comunidades tradicionais.
Nesse contexto, no Estado de Goiás, dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) apontam para 2. 126 escolas desativadas no período de 2020 a 2023. Em 2023 foram desativadas 19 escolas. Em meio ao contexto pandêmico, no ano de 2020, o Governo do Estado de Goiás inaugurou o Programa GOIÁS TEC – Ensino Médio ao Alcance de Todos, pela Secretaria de Estado da Educação (Seduc), voltado para o 8º e 9º ano do ensino fundamental e das três séries do ensino médio.
Apresentado como “modernização” e ferramenta necessária para as condições do campo goiano, o programa reproduz a lógica perversa de substituir o ensino presencial e dialógico por videoaulas gravadas e plataformas digitais, sem garantir infraestrutura básica, como acesso à internet, ou respeitar os saberes ancestrais de povos quilombolas, como os Kalunga, violando diretamente as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Resolução CNE/CEB nº 8/2012), que exigem currículos vinculados à territorialidade, memória e identidade dessas comunidades.
Embora reconheçamos a importância de integrar tecnologia ao ensino, alertamos para os riscos de uma implementação que desconsidera as particularidades culturais, sociais e pedagógicas das comunidades afetadas, reforçando desigualdades e precarizando o direito à educação. Além disso, denunciamos a falta de escuta e participação dos povos afetados por esta política Caiadista de precarização e violações, o que fere diretamente os princípios legais e constitucionais que garantem uma educação plural, democrática e respeitosa das diversidades.
Nesse contexto, a distribuição de videoaulas para serem assistidas off-line não resolve o problema de falta de acesso e ainda agrava a desigualdade educacional, pois impossibilita a interação ao vivo com os professores, e a construção coletiva do conhecimento se perde. Ao priorizar aulas gravadas e o uso massivo de plataformas digitais, reduz a educação a um processo mecânico e individualizado. A falta de interação direta com professores e a ausência de diálogo em sala de aula comprometem a formação crítica dos estudantes. Por conta das dificuldades e ausência de internet em algumas unidades escolares, as videoaulas são baixadas e passadas de forma off-line, impossibilita a interação em tempo real com o(a) professor(a) de estúdio.
As comunidades quilombolas de Goiás, como os Kalunga, são exemplo de uma resistência histórica que tem suas raízes no passado escravocrata, mas que também está intimamente conectada com práticas e saberes tradicionais que atravessam gerações. Estas comunidades possuem uma rica cultura, com formas próprias de organização social, modos de produção, saberes e práticas que fazem parte de sua identidade e resistência. A educação, nesse contexto, deve ser um espaço de afirmação e valorização dessas tradições, além de ser um instrumento de fortalecimento dessas comunidades no enfrentamento das adversidades impostas pelo modelo hegemônico da sociedade brasileira.
No entanto, o modelo educacional proposto pelo Goiás TEC, ao priorizar aulas gravadas e o uso massivo de plataformas digitais, ignora essas especificidades culturais e o contexto local das comunidades quilombolas. O formato padronizado e a proposta de ensino à distância, embora possam trazer algumas vantagens em termos de acesso aos conteúdos e à tecnologia, não são adequados para essas comunidades, onde as realidades sociais e culturais são profundamente distintas do que o modelo busca implementar. A educação quilombola não pode ser reduzida a um processo mecânico de transmissão de conteúdos de forma individualizada, sem levar em consideração a vivência comunitária, o respeito aos saberes ancestrais e as práticas pedagógicas locais.
A educação não é apenas sobre a transmissão de informações, mas sobre a construção de conhecimento a partir do diálogo, do debate e da troca de experiências. No caso das comunidades quilombolas, as práticas educativas muitas vezes se dão no campo da oralidade, no convívio com a natureza e na vivência das tradições culturais, e essas formas de aprendizagem não podem ser substituídas por um modelo mecânico de ensino a distância, centrado em aulas gravadas e sem a possibilidade de interação direta e contínua com os professores.
A implementação do Goiás TEC não é fato isolado. Parte de uma ação articulada e coordenada das oligarquias agrárias capitaneada pelo Governador Ronaldo Caiado de desmontar a educação, e em especial a Educação do Campo (berço da resistência dos movimentos populares), e que vai culminar com a inauguração neste ano, no dia 27 de janeiro de 2025 do Agrocolégio Maguito Vilela pautado na lógica do agronegócio e seu projeto educacional do “agrinho”. Fecham as escolas do campo, impõe um modelo de educação à distância e, ainda arregimentam os estudantes da escola do campo, das Escolas Famílias Agrícolas, para uma formação presencial.
Em tese, a proposta está baseada na alternância dos momentos formativos, sem utilizar este nome e os princípios acumulados ao longo desses 27 anos de educação do campo, obviamente. Mas propõe uma formação pautada em dois momentos formativos – presencial e integral, e nas comunidades. A promessa é de que sairão com dupla formação: ensino médio e profissionalizante.
Portanto, é urgente que no estado de Goiás, a educação nas comunidades rurais, tradicionais e quilombolas seja pensada de forma integrada com o cotidiano de seus habitantes, reconhecendo o valor dos saberes locais e criando um ambiente educacional que possibilite o fortalecimento dessas identidades, sem a ameaça de apagamento cultural. É necessário que as comunidades quilombolas de Goiás, bem como as demais populações tradicionais, tenham voz ativa nas decisões sobre suas próprias formas de aprender. A educação deve ser um espaço de valorização das culturas locais, de fortalecimento das identidades e de reconhecimento da pluralidade de saberes que existem em nosso país, não espaço de docilização dos corpos e sujeitos a uma lógica mercantilizada de educação que não respeita a ancestralidade e dos saberes destas comunidades.
*Erika Macedo Moreira, Herbert Silva e Juliana Moreno são da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) de Goiás.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.