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Da criminalização da advocacia popular à violência institucional na luta pelas terras da região amazônica

A ofensiva contra a LCP e sua defensora expõe o modus operandi do Estado em regiões de conflito

Allan Hahnemann Ferreira, Erika Macedo Moreira, Erlandes Maranhão Tupi, Herbert Silva Araujo, Vilmar Almeida Coelho*

A persistência histórica de um poder punitivo alinhado aos interesses das elites, como aponta Cerqueira e Neder (2006), materializa-se hoje na criminalização da advogada popular Lenir Correia e dos integrantes da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) Claudecir Ribeiro Silveira, Janaine Menegildo Zanella, Rubens Pereira Braga e Wemerson Marcos da Silva. A Operação Canaã, deflagrada em 2020 pelo Estado de Rondônia sob a acusação de ‘formação de organização criminosa’, exemplifica o modus operandi de um sistema que, há séculos, instrumentaliza o aparato judicial e policial para silenciar dissidências. 

No caso brasileiro há uma permanência de longa duração na cultura política e jurídica das instituições policiais e judiciais, desde meados do século XIX até os dias atuais, e o que pode ser verificado na operação Canaã. Considerando sobretudo que saímos do período da Ditadura Militar (1964-1985) sem qualquer profunda e séria discussão sobre a necessária reforma e mudança nas políticas de segurança pública, o poder punitivo de repressão máxima, autoritário e violento faz parte da cultura brasileira há séculos e vem se perpetuando e acumulando práticas punitivistas vinculados aos interesses de classes e frações das classes dominantes. E, com efeito, a criminalização da advocacia popular é mais um efeito dessa expansão da programação criminalizante no Brasil.

Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam que, em 2023, houve um crescimento da luta pela terra no Brasil. Rondônia destaca-se entre os estados com maior número de massacres, criminalização e violência contra trabalhadores rurais. Na última década, 73% dos assassinatos relacionados a disputas agrárias e violações de direitos humanos ocorreram na Amazônia Legal, muitas vezes em áreas de conflito com grileiros e empresas do agronegócio. Esse cenário não é aleatório, reflete a dinâmica de uma “fronteira em movimento”, como define o sociólogo José de Souza Martins, onde a expansão do capital sobre a floresta reproduz relações de exploração históricas. Nesse espaço, segundo o autor, “a lei vira exceção, e a justiça serve aos que detêm o poder”.

Em Rondônia, essa lógica se materializa em conflitos que remontam à colonização recente da Amazônia. Pistoleiros, madeireiros e o próprio Estado atuam como agentes de um projeto de acumulação primitiva, marcado pela grilagem, desmatamento ilegal e expropriação violenta de comunidades. As expressões da questão social na região, concentração fundiária, marginalização de camponeses e violência institucional não são meros acidentes, mas fruto de uma estrutura que privilegia o latifúndio em detrimento da reforma agrária.

Assim, a Operação Canaã, deflagrada no ano de 2020 pelo Estado de Rondônia contra a advogada popular Lenir Correia e os integrantes da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) Claudecir Ribeiro Silveira, Janaine Menegildo Zanella, Rubens Pereira Braga e Wemerson Marcos da Silva, não é um caso isolado e insere-se neste contexto. 

Aos olhos da criminologia crítica, a operação Canaã e sua sentença condenatória demonstra como os processos de criminalização tendem a ser realizados contra a atuação de movimentos sociais organizados e seus defensores de direitos humanos: ao invadir lares camponeses, prender trabalhadores rurais e atacar uma defensora que desafia estruturas de poder, o Estado expõe seu caráter classista. 

A ofensiva contra a LCP e sua defensora expõe o modus operandi do Estado em regiões de conflito. Ao invadir casas de camponeses sem mandado (violando o artigo 5º, XI, da CF/88), quebrar o sigilo da advocacia (artigo 7º do Estatuto da OAB) e negar a vigência de direitos tais como a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, a operação representa essa face criminalizante desse continuum na histórica criminalização dos movimentos sociais e da advocacia popular em direitos humanos. 

No caso brasileiro é histórica esta união umbilical entre o Estado e as classes dominantes na criminalização dos movimentos sociais, logo, sempre utilizaram o seu aparato judicial e policial no controle social das classes excluídas e dos movimentos sociais insurgentes. 

Em regra, quando há ações dos movimentos sociais para pressionar o Estado a cumprir suas funções e efetivar os direitos sociais, a primeira medida do Estado – Poder Executivo – é chamar seu aparato policial e judicial para conter as manifestações e reivindicações. 

Como não consegue resolver os problemas sociais que ele próprio criou ou deixou que persistisse, pelo seu compromisso com a ideologia capitalista e o estado neoliberal, transfere as responsabilidades para o aparato policial e judicial, que terão a tarefa de criminalizar exemplarmente essas insurgências políticas e ocultar as mazelas sociais denunciadas, conforme nos lembra Allan Hahnemann Ferreira (2007).

Por óbvio no caso analisado os alvos não são coincidência: a LCP atua em áreas cobiçadas pelo agronegócio, onde a especulação imobiliária e o desmatamento ilegal avançam sob proteção política. Por óbvio, a advogada popular Lenir Corrêa, em sua atuação, denunciou latifúndios improdutivos no Estado de Rondônia, muitos destes que se originaram a partir da concessão de terras públicas por meio de Contratos de Alienação de Terras Públicas. 

Terras públicas, que deveriam ser destinadas para políticas de reforma agrária, foram objeto de CATPS e entregues para alguns privilegiados, que sequer cumpriram com as cláusulas resolutivas do contrato, sendo unicamente objeto de especulação, sendo fartamente denunciados pela LCP. Para Brigitte Rocha, coordenadora da CPT na região, “a Operação Canaã é parte de uma estratégia para invisibilizar os crimes do latifúndio e punir as vítimas”. A perseguição a Lenir Correia simboliza a tentativa de calar defensores que confrontam o poder oligárquico.

Sob uma ótica crítica e de resistência, a criminalização de movimentos sociais como a LCP não é novidade. Trata-se de uma tática histórica para manter privilégios: o direito é instrumentalizado para legitimar a concentração de terras e neutralizar resistências. A investida contra a LCP repete padrões coloniais, nos quais a justiça serve aos donos do poder e a violência é ferramenta de controle territorial.

Diante desse cenário, convoca-se a sociedade a resistir. A Constituição de 1988, com seu compromisso com a função social da terra e os direitos dos trabalhadores, não pode ser reduzida à letra-morta. Como lembra o poema musicado, “enquanto o machado não vem, o pau se levanta”: a luta pela terra persiste, mesmo sob repressão. A solidariedade internacional, a pressão de entidades de direitos humanos e a mobilização popular são armas indispensáveis para frear a escalada autoritária.

A luta pela Amazônia é a luta pelo Brasil. Enquanto houver sangue derramado em nome do latifúndio, haverá resistência. A terra não é mercadoria, é vida, dignidade e futuro. Defender os povos da floresta é honrar a promessa de um país justo. Como bem alertou Martins, na fronteira amazônica, o que está em jogo é o próprio sentido de democracia. Portanto, viva a advogada popular Lenir Correia e os integrantes da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) Claudecir Ribeiro Silveira, Janaine Menegildo Zanella, Rubens Pereira Braga e Wemerson Marcos da Silva, que suas lutas não sejam em vão.

*Integrantes da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) Goiás.

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