Me arrisco a dizer que Pirataria é um dos sintomas da branquitude por se tratar de um movimento autônomo ou organizado de pilhar territórios (seja lá quais forem) para obtenção de riqueza e poder. A cultura da pirataria continua a todo vapor, produzindo suas estéticas em cima de nossas costas. Tentaram mudar o nome de uma iguaria típica africana e patrimônio cultural, o acarajé, para bolinho de Jesus. Uma cantora branca baiana evangélica, que se projetou com a Axé Music, provocou uma polêmica ao modificar a letra de uma música que se referia a Yemanjá, substituindo por Yeshua.
Se chegamos aqui em Terra Brasilis em decorrência de uma pirataria, fomos capazes de inventar depois a “Pilantragem” para respirar. Ao assistir o documentário “Simonal – ninguém sabe o duro que dei”1, o sentimento foi de encantamento e espanto. Simonal se transformou em um fenômeno. Ele enchia programas de auditório, casas de show, teatros, estádios de futebol com pessoas que o acompanhavam pela sua criatividade, musicalidade e performance. Fazia do seu encontro com o público um acontecimento. A Pilantragem, essa expressão muito utilizada por ele, se constituiu como um modo de fazer música e um jeito de corpo, um molejo, um estilo de viver e fazer música efusivamente criativo, ritmicamente circular por misturar estilos musicais diferentes.
Pilantragem, segundo ele, quer dizer descompromisso com a inteligência. Isso dá a pensar por um lado que, permite um jogo de corpo e fala que ginga com o aqui e agora da vida, com abertura para a criação no encontro, movimento que dá vida. A não produtividade que produz algo fora da ordem, é nesse fora que o sujeito se cria. Isso nos faz lembrar do que Glissant2 chama de nomadismo circular, quando o movimento de circulação pelos territórios é uma busca de garantir a sobrevivência de um grupo, uma forma tolerante do sedentarismo impossível, uma busca pelo Outro.
Nunca se sabe no que uma invenção pode se tornar. Não temos o controle disso, mas é preciso atenção aos movimentos que podem ganhar e os efeitos disso nas nossas histórias. Por outro lado, o descompromisso com a inteligência é como receber uma meia lua de compasso sem saber de onde veio, nem para onde está olhando. É como se autossabotar e abrir espaço para a sabotagem em que não é possível juntar vida e liberdade, criação e sucesso, inteligência e espontaneidade. Será que o descompromisso com a inteligência levou Simonal à queda? As benesses advindas desse sucesso, sem uma compreensão do que estava acontecendo, disjuntada da realidade, fez com que ele ficasse cego perante os perigos, o contexto de ditadura naquela época em que ele teve ascensão social, mobilidade econômica e projeção como artista num meio artístico dominado por brancos.
Naquele momento, uma branquitude conservadora – incomodada com o fato de Simonal ter conseguido impressionar com sua musicalidade, arrebatando públicos e audiência, sem se intimidar por ser negro – o condenou por isto. Ele foi capturado, tornado outra coisa, aprisionado por fatos e identidades que lhe impuseram, ofuscando seu brilho e despotencializando sua aparição. Ao que parece, quiseram lhe mostrar o lugar que deveria estar na sociedade como homem negro, e não era um lugar de sucesso, de proeminência. A “inveja branca” não é boazinha. O branco tentou acabar com a imagem de Simonal e sua estética. Mas, o desfecho dessa história não retira a potência de sua criação e ela diz muito da nossa constituição como sujeitos nesse território diaspórico e como criamos as nossas relações.
Um negro pode ser condenado por adentrar um espaço branco, mas o contrário não acontece. Que a gente possa compartilhar dos espaços e trocar saberes é algo promissor em termos de preservação de algo comum que nós precisamos garantir para todos: a existência. Mas, há uma branquitude ávida por aprender as nossas tecnologias ancestrais e se apropriar disso dominando o espaço, tornando algo privativo e até mesmo lucrando com isso. Um movimento inconsciente e, por vezes, consciente e intencional. E sem que percebamos de imediato porque a invasão acontece aos poucos, como a gentrificação nas cidades, as grilagens no campo e as apropriações culturais, como mencionado no início desse texto.
Os territórios em que havia mais nativos do que brancos vão se tornando território de branco que quer “empretecer”, como se isso fosse possível. Ao que parece, o branco, incluindo alguns “antirracistas”, não sabe conviver com as diferenças se não for por dominação territorial e cultural. Uma mentalidade racional infértil, rígida, que se pretende única e verdadeira sobre as coisas e o modo de criá-las. E aqui trago mais uma vez Glissant, que chamará isto de nomadismo flecha. Ou seja, um nomadismo invasor, cujo objetivo é conquistar o território por meio do extermínio de seus ocupantes, motivados por um desejo devastador de sedentarismo.
Por mais que o branco pobre e periférico sofra com as mazelas sociais de uma sociedade desigual, a racialização ainda assim lhe favorecerá. Não será o corpo branco alvo prioritário da barbárie, isso não é nenhuma novidade, é fato. Sua aproximação e presença em territórios não brancos não o livra de atuar consciente e inconscientemente numa posição hierarquizada de poder, de domínio da cena. Isso é perceptível esteticamente com a disposição dos corpos no espaço e como se movimentam. Uma das coisas que tenho lembrado ultimamente é de meu Doté Zé de Bessen3 falar que antes, o leite e o café se misturavam, hoje há mais leite nesse café do que café.
É uma crítica a ser feita à branquitude que tem ocupado o lugar de protagonismo em espaços de pessoas negras como os terreiros, a capoeira, o samba, as escolas de samba. Modificando as nossas tradições de um modo que descaracteriza aquilo que foi criado por nós, para nos fortalecer e libertar. Apesar de existirem negros católicos, nunca tivemos um Papa negro, dificilmente vemos dançarinas negras fazerem solo no ballet. Mas, há mulheres brancas que até pagam caro para serem rainhas da bateria de uma escola de samba sem nenhuma relação com a comunidade do entorno, menos ainda respeito por ela. De repente, tudo vira entretenimento esvaziado de sentido ou de uma misticidade desconectada da realidade, performando espetáculos em redes sociais. A apropriação que fazem de nossas tradições não se revertem em benefícios para as nossas comunidades. E acaba fortalecendo uma ideia individualista de mundo, bem diferente do sentido comunitário que as nossas tradições sustentam. A arte e a literatura são fundamentais no sentido de restituir o que nos foi negado e tomado. Nossas produções estéticas, culturais e políticas são armas para libertação, para resistir à brutalidade de uma sociedade racializada e estruturada para violentar não brancos.
A crítica tecida aqui à branquitude não diminui o trabalho de pessoas brancas atentas aos seus lugares de pertencimento numa sociedade como a nossa. Nem deslegitima as relações de trocas afetivas e de saberes entre pessoas de diferentes cores. Chamamos atenção para estas relações que figurarão sempre na tensão entre amizade e inimizade, amor e hostilidade, compartilhamento e dominação-apropriação. Branquitude está sendo entendida aqui como um conjunto de significantes que estruturam uma linguagem compartilhada e as relações entre sujeitos na sociedade. Estas determinadas por uma diferenciação racial estabelecendo suposta superioridade de um grupo racial, o branco, em relação a outros não brancos. E sendo algo que estrutura a linguagem compartilhada, é possível identificar seus códigos, sobretudo nas pessoas racializadas brancas, mas não só. O auto ódio e a legitimação de uma branquitude pirata é um traço de como a branquitude atravessa as pessoas racializadas como negras e indígenas.
Se não podemos ser protagonistas nos nossos territórios, o que nos resta? A gente semeia, colhe e planta ao mesmo tempo. Colhemos os frutos de quem nos antecedeu e plantou. Plantamos e semeamos para as futuras gerações o que há de bom e ruim no nosso tempo, e não em outro fora da experiência compartilhada. Buscamos sempre as melhores condições, isto não garante que as teremos. Mas, que seja sempre uma busca para garantir a nossa existência e uma busca pelo Outro e não pelo único, porque a vida é movimento e ninguém vive e morre sozinho.
Notas
1. Vide documentário “Simonal – ninguém sabe o duro que dei”. Ano: 2009. Direção: Cláudio Manoel, Micael Langer, Calvito Leal.
2. Édouard Glissant. Poética da relação. Editora Bazar do tempo, 2021.
3. Denominação sacerdotal de Candomblé na nação Jeje.