O Ceará tem revelado nomes significativos em sua produção literária contemporânea. Nesse sentido, um nome que merece toda atenção é o de Zélia Sales. A autora, que tem participação em coletâneas diversas, aponta n’A cadeira de barbeiro (2015), seu livro de estreia, linguagem concisa, representações da infância e lirismo pungente.
O percurso estético percebido em seu primeiro livro de contos pode ser encontrado, também, em seu segundo livro: O desespero do sangue (2018). Neste, observamos desde conflitivas relações familiares até problemas sociais complexos em contos sempre comprometidos com o que há de sucinto e de expressivo na linguagem literária.
O livro inicia com o conto A casa dos Rosa, que apresenta uma narradora-personagem que rememora a casa evocada no título. Nessa casa, espaço de “desassossego” e que “não parecia uma casa de família”, vive uma figura feminina que, em sua solidão, realiza um grande painel de colagens. Memória, efemeridade do tempo e solidão da mulher são os temas dessa narrativa.
Muitas figuras femininas estão inseridas nas narrativas da autora. São personagens repletas de camadas, como em Tia Cândida, Leda, Dias de chuva, Mercado de carne e Natal, dentre outras.
No conto Tia Cândida, que é escrito com datação típica de um diário, as personagens femininas estão inseridas em contexto desafiador. Dentre os temas tratados, podemos destacar: velhice, demência cognitiva, culpa, conflitos decorrentes do patriarcado, superdimensionamento de responsabilidades direcionadas à figura feminina e morte.
Em Mercado de carnes, texto irônico e não menos contundente, são apresentados temas como: prostituição infantil, depreciação da figura feminina, exploração sexual e outras problemáticas resultantes do patriarcado com seus aprisionamentos e opressões.
No último conto do livro, Desespero do sangue, a personagem Dorinha se destaca por ser uma mulher destemida e livre — ela expressa seus desejos e é incapaz de submeter-se aos aprisionamentos sociais impostos à mulher. Apesar dos dissabores da vida, o narrador diz a seu respeito que (página 118): “Ela apenas sorria”.
Dorinha, em sua liberdade quase ingênua, não fica isenta de sofrer punições, pois a sociedade na qual ela está inserida não está preparada para sua liberdade — e para seu riso. Assim, podemos constatar, além dos pontos mencionados, que um tema se sobressai na narrativa: a violência contra a mulher, sobretudo quando ela se inclina para o feminicídio.
Temas complexos, como os já citados, estão presentes em todos os contos de Zélia Sales: adultério, conflitos familiares, crítica social, pedofilia, solidão, morte, dentre outras temáticas. Há profundidade nessas narrativas, sobretudo por elas serem construídas com a maestria que o conto exige: personagens bem delineadas, contenção vocabular, unidade dramática e desfecho ressonante.
Por esse motivo, O desespero do sangue deve ser lido e relido, porque aponta para o quão notável é a escrita dessa autora das mais relevantes da literatura contemporânea no Ceará. Leiamos A cadeira de barbeiro e O desespero do sangue, portanto, e esperemos a publicação do terceiro livro de contos da autora, que será publicado pela Editora Substânsia e receberá o título: Quando morrem as bonecas. Estou ansioso por essa obra, pois Zélia Sales, desde que li seu conto Sobre dentes, tornou-se uma das escritoras contemporâneas que mais tenho lido e admirado.
Nascida em Itapajé (CE), Zélia Sales é graduada em Letras e especialista em Investigação Literária pela Uece. Ela obteve menção honrosa em duas edições do Prêmio Ideal Clube, mas é presença constante nas coletâneas publicadas por essa premiação. Além disso, participou das coletâneas: Cartografia da palavra (2017), Relicário (2019) e Quando a maré encher – contos cearenses contemporâneos (2021). Em 2015, publicou o livro de contos A cadeira de barbeiro e, em 2016, recebeu o Prêmio SESC de Contos da Unidade de Crato (CE).
* Émerson Cardoso é doutor, mestre, especialista e graduado em Letras. Pesquisador em Literaturas de Língua Portuguesa e Francesa, Professor e Escritor. Publicou, dentre outras obras, os livros: O baile das assimetrias (2022), Jornadas (2023) e Romanceiros (que recebeu o I Prêmio Literário Demócrito Rocha de 2024). Organizou Juazeiro tem artistas, Juazeiro tem poesia: manifesto poético (2024).
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
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