Ouça a Rádio BdF

Música, esporte, heroísmo e outros Carnavais

O encontro do poeta, jornalista e romancista Mário de Andrade com Chico Antônio, cantor de coco, músico e repentista natural do Rio Grande do Norte, em janeiro de 1929, resultou em um dos textos mais deslumbrados e emocionantes do escritor paulistano. Descrevendo a noite em que passaram juntos, Mário, em certa passagem, diz:

“O que faz com o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na ‘pancada do ganzá’, Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. E quando tomado pela exaltação musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se é heroísmo”.

Mário de Andrade, que foi diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, atual Secretaria de Cultura, de 1935 a 1939, tinha pressa. Ele achava que tudo aquilo de mais genuíno da alma humana, descoberto nas tradições coletivas das zonas rurais das regiões Norte e Nordeste do Brasil, iria acabar em breve. O espírito do capitalismo, que fundara a ética das nascentes cidades urbanas do país, como Rio de Janeiro e São Paulo, logo iria capturar essas pessoas e seus territórios. A partir de então, Mário de Andrade contribuiu para a solidificação do Nordeste como lugar mítico da alma brasileira.

Música, esporte ou heroísmo? Sempre fiquei instigado com os saberes e ofícios do corpo que transcendem classificações e segmentações. Quero falar da capoeira, do frevo e da relação dessas duas práticas, no Brasil, com o boxe, minha modalidade de estudo e atuação.

A capoeira talvez seja um dos saberes onde a relação entre dança, música, valentia e esporte melhor se apresente. Tudo isso coexiste em conjunto, conectado e, ao mesmo tempo em uma roda de capoeira. Na Bahia, a relação da capoeira com o boxe possui raízes profundas. As teorias locais para a popularidade do boxe em Salvador, como escutei em minha pesquisa, revelam que a prática do boxe está intimamente associada à cultura da dança e às práticas populares do corpo, como a própria capoeira e suas ramificações. E, também, às festas de rua, gratuitas, populares, ligadas ao Carnaval e aos blocos de trio elétrico. Na Ilha de Itaparica, em setembro de 2021, ouvi do treinador de boxe Uelinton Cardoso “Squiva”, que também é mestre de capoeira:

“Boxe e capoeira vieram de forma simultânea. O boxe no subúrbio de Salvador era muito forte. Comecei com onze anos de idade, em academia de bairro, fundo de quintal, com alguns colegas que sabiam mais. Eu costumo dizer que boxe e capoeira caminhavam lado a lado, porque se olhava para as duas artes como artes de bandido, marginal. Havia uma discriminação muito grande. Antigamente a gente treinava no saco de pancada sem proteção e ficava com a mão queimada, então quando a polícia abordava na rua, costumava olhar pra ver a mão: ‘ah, você é boxeador’, daí começava aquela coisa de intimidar, aquele discurso duro”.

O frevo pernambucano também possui relações ancestrais com a capoeira, tanto nos movimentos quanto na sua história de resistência. No século XIX, capoeiristas eram contratados para proteger blocos de Carnaval no Recife, o que ajudou a incorporar os movimentos ágeis e acrobáticos ao frevo. E, assim como o boxe, a capoeira e outras práticas de origem popular, o frevo também foi marginalizado antes de ser reconhecido como patrimônio.

Como frequentador e entusiasta do Carnaval pernambucano, sempre fui apaixonado pelo frevo, suas orquestras, bandas, ritmos e, principalmente, pela habilidade dos e das passistas. É de tirar o fôlego ver passistas dançando ao som da orquestra. O frevo exige força, resistência, flexibilidade e coordenação, características essenciais em várias modalidades esportivas. Seus passistas realizam movimentos que lembram exercícios de ginástica e até treinamentos funcionais usados em esportes de alto rendimento, como no próprio boxe.

Para além da aproximação com o esporte, principalmente por meio da capoeira, da dança e da exigência física envolvida em sua prática, há uma relação interessante do frevo com a nobre arte. Por mais que de forma indireta, não deixa de ser fundamental para o desenvolvimento e popularidade do boxe na região nordeste do Brasil. Essa conexão surgiu através do Carnaval. O frevo pernambucano influenciou diretamente o axé music na Bahia, especialmente nos anos 1980, quando artistas começaram a incorporar essa batida em canções carnavalescas. Foi através do galope, um dos ritmos acelerados que compõe o frevo, que nasceu a pipoca do Carnaval. Ou seja, o termo pipoca surgiu, provavelmente, devido à influência da pulsação rítmica acelerada desenvolvida pela banda Chiclete com Banana, que teve enquanto referência o ritmo do frevo pernambucano.

Logo o ritmo foi adotado por diversas outras bandas e grupos, tornando-se hegemônico no Carnaval de trio. Levando os foliões a pularem igual pipoca, possibilitou a criação de uma dança a partir de uma postura específica, a base de combate do boxe: uma técnica corporal destemida, afrontosa e agressiva, com a posição dos braços erguidos, em guarda alta, golpes lançados riscando o ar, saltos, fintas, empurrões, gingados e esquivas.

Tudo isso para dizer, desejar e estimar um ótimo Carnaval neste ano. Seja na pancada do ganzá, na alegria das pernas ou na folia contagiante da pipoca, espero que a festa, que mistura música, esporte e heroísmo, continue a funcionar como espaço democrático e tempo de fabulação sobre o futuro que não deixe de partir de uma perspectiva crítica sobre o mundo.

*Michel de Paula Soares é doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, pesquisador do LabNAU/USP e treinador do Boxe Autônomo.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Veja mais