*por Michel de Paula Soares
Começo a coluna de hoje com uma pequena história, contada por uma aluna do Boxe Autônomo, dentro do vagão do metrô. Disse ela que, no dia anterior, ao chegar em casa após um treino, cansada e faminta, abriu um aplicativo de horóscopo que consulta regularmente, e foi surpreendida com a seguinte mensagem do dia: você precisa de toque humano. Ela achou curiosa a frase, e oportuna, pois toque humano foi o que mais aconteceu pouco tempo antes, durante a sessão de treino. Sua dúvida, que gerou uma série de reflexões e risadas, era: golpear com as luvas pode ser entendido como toque humano, no contexto sugerido pela mensagem motivacional?
Na prática regular do boxe, seja para homens ou para mulheres, há uma associação entre a busca por desempenho e uma hiperexposição de si extremamente íntima. É preciso tocar o rosto do oponente, e mesmo do parceiro de treino, com agressividade. Pense comigo: tocar o rosto das pessoas, mesmo as mais próximas e familiares, é um gesto raro, que revela muita intimidade. Tocar o rosto de outra pessoa com agressividade, gesto incentivado no boxe e em outros esportes de combate, é ainda mais raro. Claro, ressaltando que agressividade e violência são coisas diferentes.
Qualquer forma de reflexão sobre o significado do rosto para a sociedade ocidental, de forma geral, precisa levar em conta sua centralidade como representação do self, da própria identidade. Assim, tocar o rosto de outra pessoa significa adentrar sua própria ideia de pessoa. Por isso é um gesto incomum.
Acredito que a participação crescente das mulheres, nas academias, escolas e equipes de boxe competitivo, precisa ser avaliada, urgentemente, pois acrescenta novas camadas de entendimento sobre a prática, como a citada acima. Há outras perspectivas sobre esse universo masculino e patriarcal que historicamente significa o boxe. Acredito que as tensões, embates e alianças estabelecidas a partir da equidade de gênero na modalidade tendem a transformar os padrões, regras e acordos que regem o ambiente do boxe olímpico, em um futuro próximo.
No Brasil, há um crescente quadro de treinadoras sendo formado. A equipe olímpica nacional tem buscado agregar e convocar novas treinadoras regularmente. Há uma tradição de boxe feminino em Salvador e outras se formando em outras capitais. Há um desenvolvimento em marcha desde as primeiras competições nacionais oficiais. E um número cada vez maior de atletas que se iniciam logo nos primeiros anos da juventude, fato fundamental para a formação competitiva de alto rendimento.
Por outro lado, e para não ser injusto, é preciso ressaltar que muitos treinadores expressam outras posturas que, muitas vezes, escapam à ideia de uma masculinidade estabelecida. Há outras performances em cena, algumas desnudas da virilidade requerida no ambiente competitivo. Existe o cuidado com as crianças, a manutenção do ambiente de treinamento, a preocupação com o coletivo, a relação com as mães dos atletas, a regulação de si através da alimentação e tantos outros cuidados com o corpo. A vaidade, a fé. Sendo o gênero uma performance, construir-se como homem, para muitos de meus colegas treinadores de boxe, senão a maioria, envolve ações e atuações para além da reprodução de práticas socialmente marcadas como masculinas.
Ou seja, de uma perspectiva de gênero, o boxe é a contradição como princípio, e também aqui está sua magia e beleza.
Para calçar as luvas e subir em um ringue, é preciso assumir protagonismo e lidar com o confronto, em diversas escalas: o confronto contra si, contra o próprio medo; o confronto contra a diferença que representa o outro, o confronto contra o ego; contra o medo da intimidade que é tocar a face do outro e ser tocado; o confronto do ambiente competitivo em si; o confronto cotidiano que significa habitar um país construído sob contradições inconciliáveis de raça, classe e gênero.
* Michel de Paula Soares é doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Núcleo de Antropologia Urbana (LabNAU) da USP e treinador do Boxe Autônomo.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.