Ouça a Rádio BdF

Viver para sofrer ou sofrer para viver?

A cidade de São Paulo amanheceu, na quinta-feira do dia 27 de março, mobilizada e encantada

Bruno Vieira Borges

Com um calendário inchado, em que se joga quase o ano todo, o futebol brasileiro tem convivido com críticas aos campeonatos estaduais, estes que aproximam as rivalidades mais longevas e locais. Para alguns, eles deveriam ser reformulados. Para outros, deveriam ser abolidos. O debate é, sim, válido. Mas e quando os deuses do futebol nos presenteiam com uma final entre Corinthians e Palmeiras no Campeonato Paulista? Não sobram tantas almas vivas desinteressadas: jogo indivisível, sempre maior que a nomenclatura que o batiza. 

A cidade de São Paulo amanheceu, na quinta-feira do dia 27 de março, mobilizada e encantada. Muitos corintianos tentaram conseguir seus ingressos de última hora, depois de uma série de acusações de cambismo, inclusive dentro do próprio clube. Outros, decidiram tomar as ruas da metrópole, ressignificado-as a partir do encontro do preto com o branco, da imponência do vermelho brilhante dos sinalizadores e da refrescância da cerveja gelada. 

Quando falamos que “não é só futebol”, chamamos atenção para a multivocalidade que o jogo é capaz de propagar. Ele assume razões, contextos e significados únicos na vida de cada pessoa, ao mesmo tempo que razões, contextos e significados compartilhados entre semelhantes e diferentes. Ele é uma espécie de prisma por onde as pessoas projetam e refratam frações de si mesmas umas sobre as outras, chacoalhando suas definições de eu. 

Nos últimos minutos da partida, após o goleiro Hugo defender o pênalti de Veiga, assistimos a uma alvorada de fogos em meio a fumaça e a neblina de Itaquera, um pandemônio desde as arquibancadas barulhentas. A torcida corintiana inflamou-se e, de certo modo, sacrificou-se pelo título que impedia o tetracampeonato de seu maior rival. Sacrificou-se porque não tardou para o Batalhão de Choque anunciar a punição: as organizadas do Corinthians estão proibidas nos estádios de São Paulo, seus instrumentos, bandeiras, faixas, indumentárias. 

O espetáculo das torcidas brasileiras vive, assim, como se fosse um bêbado equilibrista na corda bamba de seu destino. É ameaçado, torna-se crime. O torcedor, criminoso. Cabe a reflexão: por que quando os ultras europeus montam seus lindos mosaicos acompanhados dos mesmos sinalizadores e fogos eles não são lidos como vândalos? Será que o problema não é a festa em si, mas quem faz a festa? Será que não estamos sentindo as garras da elitização da grande festa popular brasileira a partir de uma tentativa de homicídio de seu protagonista? 

Nesse ponto, o torcedor corintiano, em filosofia, diria que amar o Corinthians é saber vestir o sofrimento como uniforme; mais ainda, como corpo; mais além, como alma. Que é saber que a vida pode e vai nos tirar pessoas, porque somos falhos, frágeis e, sobretudo, finitos. Que é saber que a vida pode e vai nos tirar sonhos, porque somos angustiados, arrogantes e, sobretudo, ansiosos. Que é saber que a vida pode e vai nos tirar memórias, porque somos esgotáveis, entediantes e, sobretudo, esquecidos. Portanto, o que importa mesmo é que exista na vida um lugar para onde possamos voltar em decorrência das durezas da vida. 

Esse lugar, muitas vezes, é um time de futebol e o amor que se tem por ele. O futebol é cíclico, mas também constante. Para ser torcedor, é preciso desenvolver formas de se habituar às oscilações; instrumentos para se transitar entre o ápice da vitória esbravejada e a ruína da derrota silenciosa. “Virar a casaca”, como se diz quando um torcedor abandona seu time em função de outro em boa fase, pode gerar, entre os inseridos no universo do futebol, suspeitas até sobre o caráter do sujeito. Vincular-se a um time é ter que lidar com isso. Não raramente, admite-se trocar até mais de namorado/a, amigo/a e chefe do que de time. 

Talvez seja justamente aí que resida o mistério e a potência do futebol — nesse apego quase místico que nos faz permanecer, insistir, suportar e, paradoxalmente, celebrar. Porque amar um clube não é um ato isolado de gosto ou lazer, mas um processo profundo de elaboração do mundo. Ao colorir as ruas, acender os sinalizadores e entoar os cânticos, o torcedor não está só fazendo festa — está reivindicando seu direito de estar, sentir e significar o espaço urbano. 

E se o futebol é, de fato, uma metáfora da vida, talvez o que o torcedor corintiano nos ensine, no fim das contas, é que há uma ética possível na fidelidade: amar aquilo que nos constitui mesmo quando tudo parece querer nos tirar isso. Viver para sofrer e sofrer para viver. Ambos. 

*Bruno Vieira Borges é formado em História pela Universidade de São Paulo, onde atualmente faz Mestrado em Sociologia. Ele está associado ao Observatório do Lazer e do Esporte (OLÉ), ao Mobilidades: Teorias, Temas e Métodos (MTTM) e ao UrbanData-Brasil.

Veja mais