Maurício Rodrigues Pinto*
“Não, não, não… É sério isso? Você não vai perguntar sobre o ato de racismo que fizeram comigo? É sério?“
Não demorou muito a viralizar o vídeo em que Luighi Hanri Sousa Santos, atacante do time sub-20 do Palmeiras, denunciou torcedores do Cerro Porteño (PAR) pelas ofensas e gestos racistas dirigidos a ele e a seu colega de time, Figueiredo. Visivelmente abalado pela experiência de violência sofrida – as imagens das cusparadas disparadas por torcedores que estavam à beira do campo e das ofensas racistas feitas por um homem que carregava um bebê no colo são muito impactantes –, o jovem de apenas 18 anos de idade, ao ser escalado pela transmissão oficial para falar da partida vencida pelo time do Palmeiras, interpelou o repórter da Conmebol, que havia se limitado a elogiar a sua performance e comentar sobre a partida, com uma das mais potentes e dolorosas denúncias do racismo em uma partida de futebol:
Até quando a gente vai passar isso? Até quando? Me fala até quando a gente vai passar por isso. O que fizeram comigo foi um crime. Você não vai perguntar isso? Você vai perguntar sobre o jogo mesmo? A Conmebol vai fazer o que sobre isso? A CBF, sei lá. Você não vai perguntar sobre isso? Não ia, né, você não ia perguntar sobre isso. Mas o que fizeram comigo foi um crime, a gente é formação, aqui é formação, pô. A gente tá aprendendo aqui…
Nesse momento, a emoção do jogador transborda, combinada com os sentimentos de indignação e revolta diante do silêncio de um repórter, que representa a omissão de entidades que sistematicamente tem minimizado e ignorado os danos causados por episódios de racismo que acontecem em jogos de futebol. Que privilegiam a continuidade do entretenimento e do espetáculo, mesmo que sob o elevado custo das dores de jovens, como Luighi e Figueiredo.
Dados levantados pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol Brasileiro mostram que entre 2014 e 2023, houve 576 ocorrências de incidentes raciais no Brasil, registradas em estádios, internet, eventos organizados pela Conmebol e outros espaços relacionados ao futebol. No que diz respeito às competições de clubes sul americanos organizadas pela Conmebol, desde 2014 – ano em que o Observatório começou a fazer o seu levantamento anual de casos de preconceito no futebol brasileiro – foram identificados 72 casos de injúrias e agressões (sobretudo de conotação racista e xenofóbica) praticadas por torcedores, atletas, dirigentes e/ou clubes de outros países da América do Sul contra atletas, torcedores e/ou equipes brasileiras participantes dessas competições.
Apenas no ano de 2023 foram 104 casos de racismo e injúria racial ocorridos em estádios de futebol, segundo o Relatório Anual do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. 22 casos ocorreram em jogos e eventos organizados pela Conmebol (13 deles fora do Brasil).
O padrão observado de tratamento dos casos de racismo pela Conmebol tem sido o de aplicação de uma multa (que variaram de 50 mil a 130 mil dólares) e a exigência de que os clubes penalizados façam ou veiculem alguma campanha contra o racismo. Em alguns casos pontuais, o clube foi também penalizado com o fechamento parcial de setores do estádio em que manda os seus jogos válidos por competições sul americanas.
Além das punições brandas e da falta de medidas socioeducativas, de campanhas efetivas e permanentes para o enfrentamento do racismo, é possível afirmar que a confederação sul americana tem sido complacente com clubes que têm histórico de reincidência em episódios de racismo. O mesmo Cerro Porteño já foi punido em pelo menos duas outras ocasiões, nos anos de 2022 e 2023, por atos e ofensas racistas proferidas por integrantes da sua torcida contra torcida e atletas do Palmeiras, durante partidas válidas pela Libertadores da América (em ambos os casos o clube foi multado em 100 mil dólares).
Dessa vez, em que pese a enorme repercussão, a reincidência do clube paraguaio e o agravante de se tratar de uma partida válida por um torneio sub-20, que conta com atletas em formação, entrando na idade adulta, a Conmebol puniu o Cerro com uma multa de apenas 50 mil dólares e a proibição do acesso de torcedores aos jogos da equipe, que logo seria eliminada do torneio.
Diante disso, é imperativo apontar o racismo institucional da Conmebol, evidente na omissão e complacência demonstrada diante de reiterados episódios de racismo nos últimos anos e na falta de ações contundentes no combate ao racismo, que fortalecem a ideia de impunidade e ajudam a promover e dar respaldo a quem pratica a violência, expressa um ato de discriminação. Esse racismo da instituição ganhou ares de escárnio após a declaração do presidente da confederação, Alejandro Dominguez, durante o sorteio das chaves das competições sul americanas de futebol masculino, organizadas pela Conmebol (Libertadores da América e Copa Sulamericana). O evento aconteceu menos de uma semana depois do episódio de racismo contra os atletas da base do Palmeiras e com a presidenta do time, Leila Pereira, recusando-se a ir ao evento em repúdio à omissão e às punições brandas aplicadas pela Conmebol. Ao ser perguntado sobre uma possível saída dos clubes brasileiros da Libertadores da América, Dominguez, de modo debochado, respondeu: “Isso seria como o Tarzan sem a Chita”, arrancando risos de jornalistas não brasileiros que o entrevistavam.
Ainda assim, não é esta a única entidade esportiva omissa em relação ao enfrentamento do racismo. A atual gestão da CBF tem apregoado um discurso “por um futebol mais Inclusivo e sem discriminação de qualquer natureza” e implementou medidas, como a campanha “Com racismo não tem jogo” e a instituição de punições para casos de racismo no Regulamento Geral de Competições organizadas pela entidade. No entanto, na prática muito pouco tem sido feito, seja no acolhimento de pessoas vitimadas por tais agressões, como na responsabilização de partes envolvidas nesses casos.
O relatório do Observatório da Discriminação Racial aponta para um aumento dos episódios de racismo no futebol brasileiro. Com base nos casos levantados e acompanhados em 2023, mesmo ano em que foram implementadas as medidas propagadas pela CBF, é possível afirmar que clubes que tem representantes envolvidos em acusações de racismo tem sido absolvidos ou recebem multas baixas. Também há a prática de converter punições mais severas, como a perda de mando de jogos ou a suspensão de profissionais envolvidos em atos racistas, em multas que são revertidas para instituições beneficentes. Mas acima de tudo, o que o levantamento mostra é que mesmo diante do aumento dos casos do racismo, a CBF e confederações estaduais parecem estar mais preocupadas em garantir que o jogo prossiga, que o calendário não venha a ser comprometido, já que nenhuma partida oficial foi encerrada ou suspensa nos casos de racismo apurados pelo Observatório.
A repercussão que o caso Luighi teve me faz pensar também no papel da mídia, outro agente que me parece importante ser considerado não só pela maneira como repercute os casos de racismo no futebol, mas como contribui para a banalização da pauta e a reincidência da sua prática. Qual deve ser o papel de canais de telecomunicação, veículos que compram direitos de transmissão e fazem a cobertura de eventos esportivos diante da ocorrência de casos de racismo e outras violências discriminatórias? Vale a pena seguir transmitindo, cobrindo eventos e mantendo contratos com organizações que praticam o racismo institucional, usando da dor de jovens vítimas do racismo em nome da maior audiência que essa pauta gera?
O que aconteceu na final da própria Libertadores sub-20, reunindo os times de Flamengo e Palmeiras, deveria servir de alerta tanto para o papel dos veículos de mídia, mas também para a falta de articulação e de compromisso de clubes e suas torcidas no enfrentamento do racismo. Durante a prorrogação de pênaltis que decidiu o campeonato, Luighi foi ridicularizado por torcedores do Flamengo presentes no estádio, com o coro de “chorão”. Mais uma mostra que a lógica do espetáculo e do entretenimento televisionado se impõe à defesa dos direitos humanos.
Mesmo sendo difícil eu vou sempre lutar pela bandeira, até porque eu gosto da minha cor e isso vai fazer eu ficar mais forte. A gente como atleta tem a visibilidade de espalhar essa mensagem, de chegar pra um mundo inteiro e cada vez mais diminuir esse racismo.
É triste pensar que Luighi, uma promessa do futebol brasileiro, tenha viralizado não pelo seu talento em campo ou por um gol feito, mas pela exposição da sua dor e de uma violência sofrida em um jogo de futebol. De alguma maneira, o racismo se impõe e vence quando todo um entorno se silencia e a vida parece seguir normalmente frente a barbárie.
“Em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, provoca e conclama a filósofa e ativista feminista negra Angela Davis. A ação antirracista, que rompeu com a normalidade desumanizadora, partiu de um jovem atleta negro de 18 anos de idade. De forma corajosa e indignada, ele expôs a ferida que havia sido aberta e a dor causada pelo racismo televisionado.
Luighi, assim como Vini Junior, Aranha, Roger Machado, Marcio Chagas da Silva são alguns exemplos de profissionais do futebol reconhecidos pelo questionamento do racismo da bola em suas múltiplas formas e camadas e que tiveram de arcar com o peso e as consequências dessa denúncia. Ao fazerem isso, arriscaram se indispor com todo um sistema, “levantando bandeiras” com o propósito de construir para outras pessoas negras um espaço livre das violências e discriminações que precisaram enfrentar. No entanto, como muito bem disse Vini Junior, hoje um dos principais símbolos da luta antirracista no futebol espetacularizado, sozinho ele (e qualquer outro atleta, por mais famoso e premiado que seja) não é capaz de combater o racismo, problema social mais abrangente, mas que estrutura o futebol no Brasil.
É preciso um compromisso efetivo de entidades esportivas, clubes, coletivos de profissionais, grupos que representem torcidas e mesmo veículos midiáticos no sentido de não aceitar seguir o jogo diante de tamanha violência desumanizante. Impor prejuízos a quem se omite e naturaliza o racismo, tornando-o parte de uma cultura institucional, e investir, apoiar ações socioeducativas, sobretudo na formação de atletas de divisões de base, que venham a fomentar uma cultura mais inclusiva e garantidora de direitos humanos. É preciso mais do que campanhas publicitárias, mas trabalhos consistentes e duradouros que vislumbrem possibilidades de futebóis antirracistas para impedir que jovens como Luighi e Figueiredo tenham que necessariamente aprender pela dor o que é ser um futebolista negro.
Assim, será possível dizer que Luighi, Vini Júnior e outres futebolistas negres além de não estarem sozinhes em suas lutas, poderão ter muito mais tranquilidade para se dedicarem e se realizarem na atividade que escolheram, jogando bola, fazendo gols e lutando por vitórias em campo.
* Maurício Rodrigues Pinto é Historiador e Doutorando em Antropologia na Universidade de São Paulo.