Por Edilson Targino de Melo Filho*
As bibliotecas negras no Brasil representam espaços de resistência cultural e promoção do conhecimento afro-brasileiro. Frente à marginalização da produção literária de autoras e autores negros nos acervos tradicionais, as iniciativas comunitárias e institucionais desempenham um papel fundamental na preservação da memória e da identidade da população afrodescendente no país. Essas bibliotecas não são apenas espaços de acesso à leitura, mas também centros de formação política e cultural, promovendo ações que desafiam a estrutura hegemônica da informação.
Biblioteca Setorial do CCA, Campus II da UFPB, localizado em Areia (PB). Nela há um acervo dedicado a autoras e autores negros. / Foto: Acervo pessoal.
Um dos desafios enfrentados pelas bibliotecas negras e pelas bibliotecas públicas em geral é a sub-representação de autoras e autores negros em seus acervos. Segundo estudos, a ausência de diversidade nas coleções bibliográficas reforça estereótipos e limita a formação identitária de pessoas leitoras negras, afetando sua percepção de pertencimento e valorização de sua cultura. Como apontado por Cardoso e Nóbrega (2010), "a memória histórica dos afro-brasileiros ainda encontra barreiras para ser legitimada nos espaços informacionais, o que reflete um silenciamento imposto por anos de invisibilidade".
O desenvolvimento de coleções que contemplam a produção literária negra não é apenas uma questão de inclusão, mas também de justiça histórica. Isso exige que as bibliotecas adotem políticas afirmativas para ampliar a presença dessas obras, além de criar estratégias para aumentar sua circulação e visibilidade.
Exemplos de bibliotecas negras no Brasil
Diversas iniciativas ao redor do país têm se dedicado à construção de bibliotecas voltadas para a valorização da cultura afro-brasileira. A Biblioteca Comunitária Solano Trindade, em São Paulo, é um exemplo emblemático de como a organização comunitária pode promover o acesso à literatura negra e fortalecer identidades. Outro caso significativo é a Biblioteca Carolina Maria de Jesus, vinculada ao Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, em São Paulo, que busca resgatar e difundir a obra de uma das principais escritoras negras do Brasil, conta com uma coleção especializada em escravidão, tráfico de pessoas escravizadas, abolição da escravatura, da América Latina, Caribe e Estados Unidos.
Além das bibliotecas físicas, a digitalização de acervos e a criação de plataformas de leitura são mostradas alternativas eficazes para ampliar o alcance dessas obras. Projetos como o Acervo Cultne, dedicados à preservação da memória negra no Brasil, contribuíram para a democratização do acesso a narrativas historicamente marginalizadas. O Instituto Cultne é uma organização dedicada à Memória e História da População Negra, tendo como base o seu extenso acervo de cultura e produção intelectual negra, criado a partir de 1980. Seus pilares de atuação são as áreas da Memória e História Pública, Cultura, Educação e Comunicação. O Acervo Cultne atua na formação da ampla consciência acerca da defesa do direito à memória e à história antirracista no Brasil.
Outras iniciativas podem ser vistas em biblioteca universitárias que dedicam parte do seu acervo literário à temática étnico-racial, algumas delas dispondo de espaço totalmente dedicados à cultura afro, como é o caso do Espaço de Pesquisa e Cultura das Relações Étnico Raciais (Epcrer), da Biblioteca Central da Universidade Federal de Pernambuco. O Espaço foi inaugurado em 2022 e tem como objetivo a promoção e a construção das relações étnico-raciais, por meio do estímulo à produção de conhecimento nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da extensão, contribuindo com a disseminação da informação antirracista e contracolonial em espaços formais e informais da educação.
A Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Agrárias, da Universidade Federal da Paraíba, também por iniciativa reservou parte do seu acervo de literatura a composição de um acervo dedicado a autoras e autores negros, a fim de difundir a literatura afro no espaço do Centro de Ciências Agrárias, mas também de encontro a consolidação de temáticas hegemônicas.
Biblioteca Setorial do CCA, Campus II da UFPB.
O papel dos profissionais da informação
As pessoas bibliotecárias desempenham um papel central na luta contra a invisibilização da produção cultural negra. Além da curadoria de acervos mais representativos, esses profissionais podem atuar na promoção de atividades culturais, como clubes de leitura, contação de histórias e rodas de conversa com escritoras e escritores negros.
Além disso, sua formação deve incluir discussões sobre biblioteconomia negra e relações étnico-raciais, permitindo que atuem de maneira mais crítica e proativa na transformação do espaço bibliotecário. Souza e Santos (2022) ressaltam que “a biblioteconomia negra precisa ser mais trabalhada pelos profissionais bibliotecários, tanto no ensino quanto na prática, para que a sociedade compreenda sua importância na construção de uma identidade coletiva e na luta por equidade racial.
Para que as bibliotecas cumpram a sua função social de forma plena, é essencial que haja espaços verdadeiramente democráticos e plurais. Isso significa romper com a lógica excludente da produção do conhecimento e reconhecer a importância da literatura afro-brasileira como parte fundamental da cultura nacional. As bibliotecas negras, assim como a composição de acervos negros, seguem sendo trincheiras de resistência e afirmação da identidade, construindo pontes entre passado, presente e futuro na luta pela equidade e representatividade.
Desafios e caminhos para o futuro
Apesar dos avanços na promoção da literatura afro-brasileira, as bibliotecas negras ainda enfrentam desafios estruturais significativos. A falta de financiamento e apoio governamental limita a ampliação e manutenção dessas iniciativas. Além disso, a dificuldade de acesso a editores e distribuidores que publicam obras de autoria de pessoas negras restringem a diversidade dos acervos.
Outra entrada é a resistência institucional à adoção de políticas afirmativas nas bibliotecas públicas. Muitos ainda operam sob uma lógica eurocêntrica de organização do conhecimento, o que dificulta a inserção de categorias específicas para literatura afro-brasileira em sistemas de catalogação.
Para superar esses desafios, algumas estratégias são fundamentais:
● Fomento a políticas públicas que garantam financiamento e apoio técnico para bibliotecas negras e comunitárias.
● Criação de redes de colaboração entre bibliotecas, editoras e pessoas autoras negras para ampliar a circulação das obras.
● Capacitação de profissionais da informação para que tenham um olhar mais crítico e inclusivo sobre os acervos e práticas bibliotecárias.
● Incentivo à digitalização e disseminação online da literatura afro-brasileira, ampliando o alcance e preservação da memória negra no país.
Assim, como discorre Silva et al (2023, p. 80) é necessário promover a constituição da Bibliografia Negra direcionada a suprir as lacunas históricas com relação à contribuição negra na construção das diversas áreas do conhecimento e no mundo que vivemos, assim como reparar as violências e injustiças epistêmicas incutidas ao conhecimento negro engendradas pelo discurso colonizador.
Desta forma, iniciativas no mercado editorial têm influenciado a produção e disseminação da temática afro-brasileira. Ações como a criação do Selo Nytoa por duas bibliotecárias tem alavancado a produção científica e literária na área das relações étnico-raciais. O Selo tem como objetivo disseminar e visibilizar conhecimentos e pesquisas produzidas por mulheres, negras e negros, indígenas e população LGBTQIA+.
Outra ação importante foi o surgimento do Quilombo Intelectual em 2018 pela bibliotecária Franciéle Garcês. O Quilombo tem o intuito de produzir e divulgar estudos científicos realizados pela e sobre as populações negra, indígena, LGBTQIA+, assim como direitos humanos.
Por fim, uma importante aliada no mercado editorial é a Editora Malê que edita literatura afro-brasileira com o objetivo de colaborar com a ampliação da diversidade do mercado editorial brasileiro.
As bibliotecas negras cumprem um papel essencial na preservação da memória e na valorização da cultura afro-brasileira. Eles não oferecem apenas acesso à literatura negra, mas também funcionam como espaços de resistência e transformação social. No entanto, a sua consolidação ainda enfrenta desafios que exigem um esforço coletivo entre as pessoas que investem nessa área, as pessoas que atuam no mercado editorial, as pessoas bibliotecárias, as pessoas que investigam (pesquisadoras e pesquisadores) e a sociedade civil.
É necessário avançar em políticas públicas e no reconhecimento institucional dessas bibliotecas como elementos fundamentais para a construção de uma sociedade mais plural e inclusiva. Como argumentam Silva e Lima (2018), “a luta pela ampliação do espaço da biblioteconomia negra não é apenas um compromisso profissional, mas uma responsabilidade social que precisa ser assumida por todos”.
Somente com ações concretas será possível garantir que as bibliotecas negras sigam cumprindo seu papel na promoção do conhecimento e na construção de narrativas afrocentradas, rompendo com séculos de apagamento e exclusão.
Referências
CARDOSO, Francilene; NÓBREGA, Nanci Gonçalves da. A biblioteca pública na (re)construção da identidade negra. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, v. 3, n. 1, 2010.
SILVA, Franciéle Carneiro Garcês da; LIMA, Graziela dos Santos. Bibliotecári@s Negr@s: ação, pesquisa e atuação política. Florianópolis: ACB, 2018.
SILVA, Franciéle Carneiro Garcês da et.al. A contribuição de pessoas bibliófilos e bibliógrafas negras dos séculos XIX e XX para construção de uma Bibliografia Negra. Ci.Inf., Brasília, DF, v.52, n.1, p.77-89, jan./abr. 2023.
SOUZA, Mirele da Costa; SANTOS, Fernando Bittencourt dos. A biblioteconomia negra no Brasil: levantamento bibliográfico na Base de Dados Referencial de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (BRAPCI). R. Bibliomar, São Luís, v. 21, n. 2, p.141-164, jul./dez. 2022.
Para saber mais
Biblioteca Carolina Maria de Jesus. Museu Afro Brasil Emanoel Araújo
Biblioteca Comunitária Solano Trindade
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal da Paraíba
*Edilson Targino de Melo Filho é doutor em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ) e membro do GT Relações Étnico-Raciais e Decolonialidades da Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (Febab) e da Associação Profissional de Bibliotecários da Paraíba. Bibliotecário-Documentalista CCA/UFPB. E-mail: [email protected]
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