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Cuidado! Eles estão chegando

Promovido pela direita, o The Send é um dos maiores movimentos missionários do mundo e será realizado em Pernambuco

O The Send Brasil, conhecido por ser um dos maiores eventos do mundo evangélico, anunciou que terá sua segunda edição brasileira em 2026, na Arena Pernambuco, a primeira vez no Nordeste. O The Send é uma iniciativa fundada nos EUA, por Lou Engle, uma das maiores figuras da direita cristã no mundo. Ele ficou conhecido por promover um evento evangelístico em Uganda, em 2010, no qual fez uma fala em favor da lei anti-LGBT que estava em discussão no país e viria a ser aprovada em 2023.

Segundo o próprio site, o The Send Brasil “existe para mobilizar e engajar uma geração em seu chamado missionário e evangelístico”. Importante pontuar que, em 2020, o The Send reuniu 160 mil pessoas em três estádios de futebol em São Paulo e Brasília, com as presenças do então presidente Jair Bolsonaro e da então ministra Damares Alves.

Apesar do evento não representar o campo evangélico em sua totalidade, a chegada dele ao Nordeste representa a ampliação de um projeto que tem uma agenda política conhecida por suas pautas morais contra o aborto e uma construção de discurso de perseguição à comunidade LGBT. Definitivamente são forças que contribuem com o avanço da agenda do nacionalismo cristão nas Américas.

2026 já começou

Não podemos ser inocentes e pensar que 2026 ainda não está em debate em cada ação dos atores da arena pública. Sabemos que o Nordeste foi fundamental para a derrota do bolsonarismo em 2022. Segundo pesquisa do Ipec, no 1º turno cerca de 40% dos evangélicos votaram em Lula na nossa região, enquanto 44,7% dos fieis optaram por Bolsonaro. Isso indica que a tentativa de tornar o “ser evangélico” uma identidade política exclusiva da direita ainda está em disputa no Nordeste.

O contexto político nordestino vem sofrendo investidas pesadas da direita de maneira organizada. Eles conseguiram ocupar secretarias estratégicas no Governo de Pernambuco em 2023, disputaram acirradamente as eleições municipais de Fortaleza (CE) em 2024 e ganharam eleições históricas em Teresina (PI) e Maceió (AL). O avanço da direita é uma realidade na região e é inegável que a extrema-direita está sendo beneficiada neste processo.

Pernambuco é o estado mais evangélico do Nordeste, a região menos evangélica do Brasil

Não sei se vocês sabem, mas o Nordeste é a região menos evangélica do Brasil (segundo pesquisa Datafolha de 2019). Na minha opinião, essa construção histórica fora do evangelicalismo é fundamental para garantir uma mínima diversidade em tempos de projetos de dominação.

O Brasil foi majoritariamente evangelizado, quando consideramos o contexto protestante, por uma evangelização norte-americana de missão. Essas missões foram omissas e usufruíram de muitos privilégios diante do contexto escravocrata. Diversos missionários estadunidenses protestantes que chegaram no Brasil colonial eram do sul dos Estados Unidos. Eles tinham acabado de perder a Guerra da Secessão, então não só defendiam e viviam em uma sociedade escravagista, como entraram em guerra para manter o escravismo.

Em 2020, primeira edição do The Send no Brasil aconteceu simultaneament em 3 estádio de futebol: Morumbi (SP), Allianz Parque (SP) e Mané Garrincha (DF). Foto: The Send/divulgação

Temos registros, por exemplo, do caso de um dos fundadores da Primeira Igreja Batista do Recife, o missionário Charles Davis Daniel, que era membro oficial da Ku Kux Klan. O historiador e teólogo batista João Chaves, no seu livro Racismo na História Batista Brasileira, afirma que “Daniel, que foi um dos fundadores da Primeira Igreja Batista em Recife e trabalhou em diversos estados no Brasil […] Daniel, que era membro da Ku Klux Klan (KKK) no Texas e tradutor da mensagem da KKK para o espanhol, foi um guerreiro tanto para Cristo quanto para a cultura sulista”.

Quando intencionalmente relembro esse fato fundante das organizações protestantes brasileiras, quero dizer que a relação religiosa entre os EUA e o Brasil é muito próxima quando se trata de evangelicalismo. Ela perpassa por um projeto de país e de igreja que ignora toda a luta por conquista de direitos dos povos afrodescendentes e indígenas.

Não estou dizendo que no The Send Brasil você não encontrará súplicas verdadeiras ou jovens genuinamente sedentos por uma realidade melhor, mas que a relevância do movimento está entrelaçada com pautas políticas reacionárias da direita cristã no mundo. Este movimento foi forjado em grupos e agências missionárias que historicamente são a favor do proselitismo religioso com povos indígenas isolados e em missões que estão sendo processadas por órgãos públicos brasileiros por violar os Direitos Humanos das comunidades indígenas.

A cultura supremacista que está se levantando nas Américas vai desembarcar em Pernambuco porque de alguma forma eles acham que o nosso estado é o lugar mais propício do Nordeste para começarem um trabalho de “endireitamento” do povo, o que em palavras da teologia do domínio significa converter a população em cidadãos de bem e criar uma nova sociedade com valores cristãos.

Vale frisar que Pernambuco é o estado mais evangélico da região Nordeste (IBGE, 2010) e não por acaso foi escolhido estrategicamente por um dos grupos mais influentes da direita cristã no país. A impressão que tenho é que o Nordeste, em especial Pernambuco, está sendo um grande laboratório de médio e longo prazo para a direita avançar no Brasil.

A bolsonarização do Nordeste e as tecnologias populares dessa terra, que é berço profético

Lembro quando briguei na internet com um pastor carioca do campo progressista, inclusive social-democrata, que alertou a igreja incansavelmente, nos últimos anos, sobre o perigo do movimento bolsonarista dentro de nossas igrejas. O motivo? Ele estava tentando convencer os seus seguidores que aqui no Nordeste nós votamos em Lula porque vimos a fome e a pobreza de perto.

Confesso que fico incomodado com essa narrativa. Dizer que o Nordeste historicamente vota no Partido dos Trabalhadores porque simplesmente é vítima de um projeto de morte, chamado fome e extrema pobreza, talvez seja uma das maiores meias-verdades construídas pela mídia e senso comum brasileiro.

O The Send é um evento de evangelização protestante com explícita conotação política de direita. Foto: The Send/divulgação

Estamos em uma terra que funda o que conhecemos de Brasil. Aqui tivemos as grandes insurreições, revoltas, quilombos, as grandes plantações de açúcar e também foi neste chão que recebemos milhares de pessoas africanas para serem escravizadas e tratadas como coisa-objeto.

O Nordeste, em sua complexidade e grandeza, do frevo ao samba de roda que surge na Bahia, desenhou caminhos de vida, brechas e tecnologias para driblar os poderes do colonialismo que ainda são bastante presentes em nossa herança. Não podemos esquecer que foi aqui que foram plantadas as primeiras ligas camponesas do país, fundamentais para a fundação de grandes forças sindicais.

Foi nesta região que tivemos o maior quilombo das Américas, um reino com cerca de 20 mil habitantes e que resistiu durante 100 anos ao império português. Foi no Nordeste que Paulo Freire fez quase que de maneira artesanal seu método de ensino, que ganhou o mundo. É a terra da Revolta dos Malês, da Revolução Pernambucana, da Independência da Bahia, Confederação do Equador e Canudos.

Da Conferência do Nordeste para o The Send Brasil, a mudança da igreja brasileira passa por aqui

Aproveitando o ensejo, não é a primeira vez que o Nordeste recebe grandes eventos do mundo evangélico. Queria lembrar da Conferência do Nordeste, evento realizado pela Confederação Evangélica do Brasil (CEB) em 1962, no Recife. O encontro tinha como tema Cristo e o processo revolucionário brasileiro, tendo como participantes grandes nomes da intelectualidade brasileira, como Celso Furtado, Gilberto Freyre e Paul Singer.

Pela primeira vez na história, o protestantismo no país estava discutindo sobre como ser igreja considerando o contexto brasileiro. Foram 160 delegados de pelo menos 20 estados e 16 denominações representadas, o que indica uma relevância enorme do evento para aquele contexto histórico. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, “as igrejas presbiterianas, metodistas e luteranas têm sua ação orientada na linha semelhante a do clero progressista, através de diversos pastores e colaboradores”.

E foram essas igrejas que construíram a Conferência do Nordeste. Mas quando acontece o golpe de 1964, a CEB sofre uma série de demissões internas, a sua sede nacional é invadida e diversos arquivos são confiscados. As lideranças são perseguidas, algumas chegam a ser torturadas, exiladas e outras estão desaparecidas até hoje.

Essa quase esperança do que poderia ter sido a igreja brasileira, sem o desmonte da Confederação Evangélica do Brasil, é um grande mistério cuja resposta nunca saberemos ao certo. Mas fica a pergunta: como a região que promoveu a Conferência do Nordeste agora protagoniza o The Send Brasil? Isso nos indica que a igreja mudou e seus interesses sociais também. Estamos diante de um futuro incerto e de um Nordeste cada vez mais desconhecido.

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