A história do engenheiro e deputado Rubens Paiva, escrita por seu filho Marcelo Paiva e eternizada por Walter Salles, no filme Ainda estou aqui, ganhador do Oscar de melhor filme internacional (2025), lança luz ao período hediondo, vivido no Brasil, nos longos anos da ditadura civil-militar, iniciada em 1964, cujas marcas fazem sangrar a sociedade brasileira até hoje.
A morte, imposta pelo Estado, a indivíduos “considerados perigosos” pelo regime, mediante violências diversas (para mim inimagináveis), foi comum naqueles anos de terror.
Indefensável sob todos os aspectos, a classificação arbitrária dos “perigosos”, incluiu e atingiu homens e mulheres, de diferentes gerações, estudantes, camponeses, advogados, operários, médicos, jornalistas, professores, engenheiros, povos indígenas, abreviando e ceifando vidas, destruindo famílias e calando potentes vozes, sempre alinhadas com a denúncia do arbítrio e/ou o anúncio de outro devir.
Este foi o caso de Anísio Teixeira.
Baiano da cidade de Caetité, nascido em 1900, advogado de formação, Anísio se fez educador nos 50 anos de vida pública, aos quais entregou sua inteligência para o projeto de construir, no Brasil, a escola pública, que considerava a condição para a democracia e o desenvolvimento.
Dizia que não haverá democracia no Brasil até que se monte no país a máquina que produz a democracia: a máquina da escola pública.
Este dito, profético e profundo, tem ecos na atualidade, pela indecisão congênita em relação à educação do povo.
Anísio simbolizou, desde o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, a luta pela educação pública, universal, gratuita, laica, mista e de formação integral.
Seu trabalho e suas articulações construíram possibilidades reais para uma escola pública, básica e superior, capaz de desenvolver a autonomia intelectual e moral do povo brasileiro, para a necessária reconstrução soberana do país.
Desde suas experiências, no governo do estado da Bahia nos anos 1920 e no governo de Pedro Ernesto na cidade do Rio de Janeiro nos anos 1930, em que coordenou a construção de dezenas de escolas, passando pela concepção e materialização da Escola Parque no bairro da Liberdade na cidade de Salvador, nos anos 1940, chegando ao arrojado plano educacional de Brasília, nova Capital Federal, nos anos 1950 e 1960, Anísio simbolizou os mais altos valores de devotamento a uma causa, a causa da educação pública e de qualidade para todos.
Sua ação na educação pública brasileira englobou todos os temas estruturantes para a implementação de políticas sérias e continuadas: do financiamento público para instituições públicas, formação de professores, pesquisa, infraestrutura, legislação, aos temas associados a prática educativa, relacionados ao currículo, a organização do trabalho pedagógico, ao modus operandi da vida escolar.
Denunciou o caráter arcaico das práticas educativas e o privilégio que, desde sempre, o acesso e a frequência à instituição escolar representaram no Brasil, afirmando a educação como direito de todos, a ser garantido pelo Estado.
Seu trabalho foi fundamental para a existência e estruturação da Universidade do Distrito Federal (UDF) – atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior (Capes), do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep) – que hoje leva seu nome – e da Universidade de Brasília (UNB), instituições nas quais exerceu funções de liderança e gestão, sempre pensando na resolução dos problemas históricos e estruturais da educação brasileira.
Afirmou, no discurso que fez na Escola Parque de Salvador, em 1966, que:
“A organização da escola, pela forma prevista, daria ao aluno a oportunidade de participar, como membro da comunidade escolar, de um conjunto rico e diversificado de experiências, em que se sentiria: o estudante na escola-classe, o trabalhador nas oficinas de atividades industriais, o cidadão nas atividades sociais, o esportista no ginásio, o artista no teatro e nas demais atividades de arte, pois todas essas atividades podiam e deviam ser desenvolvidas, partindo da experiência atual das crianças para os planejamentos elaborados com a sua plena participação e depois executados por elas próprias”.
“Daria”, pois, a interrupção imposta pela brutalidade da ditadura, destituiu-o do cargo de reitor da UNB no dia 9 de abril de 1964 e estraçalhou o projeto educativo que estava em curso, lastreado pela primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961) e pelo primeiro Plano Nacional de Educação (1962).
Em um país escravocrata, de oportunidades definidas pelo berço e pelo sobrenome, suas escolhas profissionais e políticas representaram uma afronta, pela qual Anísio pagou alto preço.
Afastado da vida pública pelo Estado Novo em 1937 e pela Ditadura em 1964, foi perseguido, silenciado, esquecido e teve sua vida interrompida em um episódio, até hoje, cercado de mistérios.
João Lima Rocha, professor titular da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, biógrafo de Anísio e obstinado pesquisador de sua vida e das circunstâncias do seu desaparecimento, desmonta, como diz o título de seu último livro, a farsa da queda no fosso de elevador, versão oficial sustentada até muito recentemente (Breve história da vida e morte de Anísio Teixeira: desmontada a farsa da queda no fosso do elevador. Salvador: EDUFBA, 2019).
No final da manhã de 11 de março de 1970, Anísio dirigiu-se, a pé, da sede da FGV, onde havia pronunciado uma conferência, ao apartamento de Aurélio Buarque de Holanda, no bairro de Botafogo, para um almoço e uma conversa sobre sua candidatura à Academia Brasileira de Letras.
Certamente era um dia agradável e ensolarado na capital carioca e Anísio não supunha que as ameaças que vinha recebendo, sobre as quais havia comentado com alguns amigos, poderiam tornar-se reais.
Nunca mais foi visto com vida.
Todas as evidências apontam que ele não chegou a este destino, que nunca foi anunciado pela portaria ao apartamento de Buarque de Holanda, que não se dirigiu ao elevador no qual teria entrado, desavisadamente, acidentando-se e perdendo sua vida física.
Matéria do Jornal Última Hora, da cidade do Rio, em sua edição de 15 de março de 1971, dia seguinte ao sepultamento, no exame das circunstâncias da morte, afirma literalmente: “ninguém viu o professor Anísio Teixeira entrar no prédio, nem mesmo o porteiro que estava em serviço, apesar de eles afirmarem que jamais se ausentam do local sem que ali fique outra pessoa responsável.” (Rocha, 2019, p.225)
No final daquele dia, sua esposa, percebendo o atraso de seu retorno para casa, ligou para a filha e um calvário na busca por informações foi iniciado. Logo receberam retorno do então senador Luiz Viana Filho, que teria obtido de alta fonte militar, por telefone, a informação de que ele estava detido em instalação da Aeronáutica, na cidade do Rio, onde deveria prestar depoimento.
O inquérito policial sobre sua morte desapareceu, mas detalhes presentes no Auto do Exame Cadavérico mostram o “local onde teria caído”, apontando indícios que demonstram a razoabilidade das suspeitas de que sua morte não aconteceu pela anunciada queda.
Entre eles, o lugar da carteira e dos óculos intactos – sobre uma viga, e a pasta acima de sua cabeça, incompatíveis com uma queda brusca, como outros detalhes relacionados a posição e o tipo de ferimentos do corpo.
A Comissão Nacional da Memória e da Verdade abraçou, em 2012, a investigação da morte de Anísio e embora tenha avançado na obtenção de informações e documentos, não apresentou conclusões definitivas sobre seu triste desaparecimento, em um momento tão trágico da história do Brasil.
É necessário e urgente que estas conclusões sejam apresentadas ao país para que honremos sua história e possamos legar às novas gerações a grandeza de sua contribuição e o horror que nunca se cansa de destruir o que poderia nos fazer avançar.
Anísio Teixeira ainda está aqui e ficará para sempre, no trabalho de todos/as que lutam por um país democrático e soberano, que só será possível com um sistema educacional público, universal, qualificado e equitativo.
Sigamos!
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.