Qual é a primeira coisa que você faz ao acordar? Lava o rosto? Escova os dentes? Coloca a água do café para ferver? Tarefas simples para a maioria das pessoas, mas um verdadeiro desafio para centenas de famílias no Vale do Jequitinhonha, onde a falta de água compromete a saúde, a dignidade e o desenvolvimento da região.
O Vale do Jequitinhonha enfrenta prolongados períodos de estiagem que prejudicam a agricultura e a pecuária locais. Mas a seca por si só não explica tudo. Práticas como monoculturas, mineração e desmatamento intensificam o problema, provocando o assoreamento dos rios e reduzindo a recarga dos aquíferos.
Araçuaí registrou a temperatura mais alta do país em 2023
Seca, degradação e abandono
Apesar de ser uma velha conhecida da região, nos últimos meses, essa situação tem se agravado de forma significativa, afetando profundamente a vida cotidiana das comunidades locais.
Em setembro de 2024, de acordo com a Coordenação Estadual de Defesa Civil (CEDEC), 137 municípios das regiões do Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas foram declarados em estado de emergência devido à seca intensa.
Durante o carnaval deste ano, Araçuaí ficou cinco dias sem água. A causa, segundo os moradores, foi a virada da balsa de captação no rio Jequitinhonha — a estrutura virou de cabeça para baixo e interrompeu o abastecimento. O episódio escancarou a fragilidade do sistema e a falta de manutenção adequada. Para a população, o que se seguiu foram dias de desespero, baldes vazios e dificuldade para realizar até as tarefas mais básicas do dia a dia.
Em novembro de 2023, o município virou notícia no Brasil inteiro ao ter sido considerado o mais quente do país, com uma temperatura de 44,8°. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), foi a maior temperatura registrada em todo o histórico de medições.
Lítio: mineração e uso da água
Também é em Araçuaí que a Sigma Lithium opera o complexo industrial de mineração extração do lítio, atividade que tem gerado grande impacto na região. Em 2019, a empresa recebeu da Agência Nacional de Águas (ANA) a outorga para bombear até 3,6 milhões de litros de água por dia do rio Jequitinhonha. Isso seria suficiente para abastecer 18 mil pessoas diariamente — mais da metade da população de Araçuaí. Enquanto comunidades racionam cada balde, grandes empresas operam com fartura.
Como a Sigma, outras empresas mineradoras têm operado na região. Um exemplo disso é a Atlas Lithium, empresa norte-americana que, em 2023, recebeu do estado prioridade no financiamento de seus empreendimentos de pesquisa e exploração do lítio — incluindo o licenciamento ambiental.
A presença da mineração de lítio na região carrega uma dualidade que não pode ser ignorada.
De um lado, ela é apresentada como promessa de progresso: geração de empregos, atração de investimentos, aumento da arrecadação e até protagonismo internacional diante da transição energética.
De outro, vêm os impactos ambientais, sociais e culturais — muitos deles já sentidos pelas comunidades: pressão sobre os recursos hídricos, degradação dos territórios, violação de direitos e pouca transparência sobre os benefícios reais para a população local. Essa contradição levanta uma pergunta urgente: desenvolvimento para quem?
Desenvolvimento para quem?
O projeto do Governo de Minas, batizado de “Vale do Lítio”, é um exemplo claro dessa lógica. Em vez de garantir participação popular, fortalecer os serviços públicos e construir uma agenda de desenvolvimento que respeite os territórios, o projeto tem priorizado a atração de grandes empresas, muitas vezes com isenções fiscais e pouca contrapartida social.
Ao rebatizar a região com um nome que reduz toda sua identidade a um único minério, o governo tenta impor uma narrativa que ignora a diversidade cultural, ambiental e humana do Jequitinhonha.
Mas nós não somos o Vale do Lítio. Somos Vale do Jequitinhonha.
A história da mineração em Minas Gerais está repleta de exemplos de exploração que, ao fim, deixaram apenas destruição, miséria e abandono – Mariana e Brumadinho são os maiores exemplos disso.
O desafio que se coloca hoje, diante da nova corrida pelo lítio, é romper com esse ciclo. A riqueza extraída do solo não pode continuar sendo levada embora enquanto o povo fica com a poeira.
Minas teve o maior número de internações por falta de saneamento básico no Brasil
É preciso garantir que o que é gerado no Vale do Jequitinhonha permaneça no Vale do Jequitinhonha — em forma de empregos dignos, tecnologia, infraestrutura, acesso à água e qualidade de vida. A exploração mineral não pode seguir como sinônimo de violência contra o território e sua gente.
O minério vai, a água não vem
A falta de acesso à água potável compromete diretamente a saúde das comunidades. Sem água, a higiene e as condições sanitárias ficam prejudicadas, aumentando a incidência de doenças — principalmente entre as crianças.
Em 2024, Minas Gerais foi o estado brasileiro com o maior número de internações hospitalares relacionadas à ausência de saneamento básico, somando 47.612 casos, segundo o Instituto Trata Brasil. Mais de 11 mil dessas internações foram causadas por doenças de transmissão oral-fecal, como diarreias, cólera, amebíase, febre tifoide e hepatite.
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Mas a água não falta só por causa da seca. Ela também não chega por falta de estrada. A precariedade das vias nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri impede que caminhões-pipa acessem famílias em regiões de difícil acesso, tornando o abastecimento lento, caro ou, muitas vezes, impossível. As mesmas estradas que escoam toneladas de minério todos os dias não garantem o mínimo para quem vive ao longo delas: o direito de beber, de cozinhar, de viver com dignidade.
A sede tem cor, tem gênero, tem endereço
A crise no acesso à água também carrega um peso desproporcional sobre as costas das mulheres e da população negra da região — justamente os grupos historicamente mais negligenciados pelo Estado.
Falta de água reforça o ciclo de pobreza e exclusão que atinge as mulheres negras
São, em sua maioria, as mulheres — mães, avós, filhas — que assumem a responsabilidade de garantir a água dentro de casa: para cozinhar, para dar banho nas crianças, para manter a higiene, para cuidar dos doentes. Quando a água falta, o tempo e a energia dessas mulheres são consumidos em longas caminhadas até uma nascente, um poço, uma cisterna ou o ponto mais próximo onde ainda escorre alguma gota.
Esse esforço diário e invisível tem consequências profundas: compromete a saúde, o trabalho, o cuidado com a família e até a permanência das meninas na escola. Assim, a falta de água se soma à desigualdade de gênero e de raça, reforçando o ciclo de pobreza e exclusão que atinge as mulheres negras de forma mais brutal. No Vale do Jequitinhonha, onde boa parte da população é negra e vive em territórios rurais ou quilombolas, isso significa negar a essas mulheres o direito a uma vida digna.
Mais do que uma crise ambiental, estamos diante de uma crise de direitos humanos. E ela tem cor, tem gênero, tem endereço certo. Negar o acesso à água é também perpetuar as desigualdades estruturais que marcam a história do nosso país — especialmente em territórios como o nosso, onde o racismo ambiental é uma realidade concreta, e não um conceito acadêmico distante.
A lógica perversa do sucateamento
Entretanto, a dificuldade enfrentada pelas famílias do Vale do Jequitinhonha no acesso à água não é apenas fruto da seca ou do acaso. É consequência direta da omissão e do desmonte promovido pelo Governo de Minas, que tem sistematicamente sucateado a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), mesmo com a empresa apresentando um lucro de R$ 1,32 bilhão em 2024.
É uma estratégia conhecida: desmonta-se o serviço público, piora-se a qualidade do atendimento — e, em seguida, apresenta-se a privatização como solução mágica. Uma lógica perversa que transforma um bem essencial em moeda de lucro.
Um exemplo concreto disso é o programa Águas dos Vales, uma proposta de parceria público-privada apresentada pelo governo do estado como alternativa para universalização do acesso ao saneamento básico para a população nos Vales do Jequitinhonha, Mucuri e parte da região Norte do Estado. Iniciativas como essas reforçam o processo de privatização em detrimento da adoção de medidas que fortalecem a estruturação das empresas públicas, como a Copasa e a Copanor, sua subsidiária.
Enquanto isso, o povo do Vale sente na pele a ausência do Estado. Falta água nas torneiras, falta estrutura para levar caminhão-pipa às comunidades, falta apoio para os agricultores e segurança hídrica para quem vive do que planta. Falta, acima de tudo, compromisso político com a vida das pessoas. O Governo Zema fecha os olhos para essa realidade e insiste na falácia de que entregar um direito básico à iniciativa privada vai resolver o problema.
Mas é importante reconhecer que a responsabilidade por garantir o direito à água é compartilhada. O governo estadual tem falhado gravemente em seu dever, mas a superação dessa crise também exige uma presença mais forte e articulada do governo federal.
Nos últimos anos, programas como o Águas do Norte de Minas, o Novo PAC Seleções e os investimentos em cisternas e sistemas de abastecimento em comunidades rurais têm representado passos importantes. Somente em 2023, o governo federal anunciou mais de R$ 1 bilhão em investimentos em segurança hídrica no Semiárido, incluindo obras nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri. Iniciativas como essas precisam ser ampliadas, aceleradas e orientadas pelas realidades locais — com escuta das comunidades, transparência e foco nas populações mais vulneráveis.
É preciso vontade política
Não podemos aceitar que, em pleno século XXI, milhares de famílias ainda vivam sem acesso a um bem tão básico. O Vale do Jequitinhonha precisa deixar de ser visto como um lugar periférico e passar a ser prioridade nas políticas públicas de desenvolvimento regional, de infraestrutura e de justiça hídrica. E isso só será possível com ação coordenada entre os entes federativos — e, principalmente, com a mobilização e organização das próprias comunidades.
É preciso dizer com todas as letras: a água é um direito humano, não uma mercadoria. A falta d’água no Vale do Jequitinhonha exige investimento público, justiça ambiental e, principalmente, participação popular na gestão da água. Não há saída sem vontade política real, sem colocar a vida acima do lucro, sem garantir que cada pessoa, em cada comunidade, tenha acesso digno à água para viver com saúde, dignidade e esperança.
A água é um direito, não um privilégio. E o Vale não quer favor, quer justiça.
Jean Freire é deputado estadual de Minas Gerais pelo Partido dos Trabalhadores (PT)
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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.