Era uma quarta-feira de novembro, quando Flávio Antônio, de 42 anos, foi atingido por uma Hilux em alta velocidade na avenida Caxangá e morreu no local. Ele estava de bicicleta, seguindo a rota que fazia havia 18 anos, mas sua vida foi interrompida por um motorista que, por alguma razão, escolheu acelerar excessivamente o carro que dirigia. Na região onde Flávio morreu atropelado em 2021 há, atualmente, um radar eletrônico para fiscalizar a velocidade.
Segundo relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), um atropelamento pode ser evitado quando a velocidade do veículo está em até 40km/h. Já um estudo do departamento de tráfego britânico aponta que, a partir de 48 km/h, 45% das vítimas de um atropelamento morrem e 50% sofrem lesões. Se subirmos a velocidade um pouco mais – para 64km/h – não há chance de sair ileso: o percentual de vítimas fatais vai para 85% e os outros 15% ficam feridos.
A diferença entre a vida e a morte de alguém no trânsito mora na escolha de quem está com as mãos em um volante e com o pé no acelerador. Ainda assim, o excesso de velocidade lidera o ranking de infrações de trânsito mais registradas no Recife, segundo dados da Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU). Isso revela a importância da fiscalização, do monitoramento e da responsabilização.
Quando a extrema-direita chegou à Presidência do Brasil, Bolsonaro buscou acabar com uma suposta “indústria da multa”. Sob seu comando, o Ministério da Infraestrutura determinou a eliminação do uso de radares estáticos, móveis e portáteis, das rodovias federais. Seguindo à risca a cartilha do ex-presidente, os bolsonaristas recifenses tentam replicar o feito na nossa cidade.
O vereador Gilson Machado Filho (PL) apresentou requerimento na Câmara Municipal para solicitar o desligamento dos radares eletrônicos no Recife, abrindo espaço para a bancada bolsonarista subir à tribuna para alardear sobre uma falsa “indústria da multa” e defender que motoristas possam acelerar à vontade, sem serem fiscalizados ou devidamente multados.
Mas pergunto: o desejo de uns por velocidade e alguns minutos a menos no trânsito se sobrepõe ao direito das outras pessoas de chegar em casa vivas e andar na cidade em segurança?! Com seu individualismo extremo, o bolsonarismo é uma ideologia que defende a morte, a violência e o negacionismo científico.
Como esquecer da pandemia, quando tantos deles foram contra o uso de máscaras e as vacinas, contrariando as evidências de que elas ajudavam a proteger mais vidas? Ou quando falamos de segurança urbana, que eles defendem o armamento da população, ainda que vários estudos apontem que quanto mais armas disponíveis e em circulação, maior a probabilidade de crimes. Defender menos fiscalização e punição para motoristas infratores revela o mesmo desprezo pelo cuidado coletivo.
Um dos argumentos do bolsonarismo para defender o desligamento de radares é a suposta existência de uma máquina arrecadatória para perseguir e prejudicar os motoristas – a tal “indústria da multa” – um jargão vago e sem evidências. Mas contra falácias e conceitos com ares de teoria da conspiração, temos dados.
Entre 2023 e 2024, por cerca de um ano, 30 dos 72 radares eletrônicos da cidade foram desligados, devido a entraves no processo de licitação. Entre julho de 2023 e maio de 2024 – com radares desligados -, 3.545 pessoas foram vítimas de sinistros de trânsito na cidade. No período anterior equivalente – julho de 2022 a maio de 2023, com radares ativos – foram 1.955 vítimas. Um aumento de 81%, segundo estudo publicado pela Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo). Fiscalização e monitoramento podem salvar vidas.
As estatísticas nos revelam um Recife com um trânsito cada dia mais violento. Uma cidade que prioriza os carros e oferece poucas alternativas realmente seguras a pessoas idosas e com mobilidade reduzida, crianças, gestantes, ciclistas ou pedestres.
Uma prova do desrespeito: de janeiro a junho de 2024, a CTTU emitiu 726 multas por infrações em ciclofaixas. Os carros, já dominantes no nosso trânsito, ainda disputam os poucos espaços destinados a outros modais. A indústria da multa não existe. O que existe é um número enorme de violações das leis de trânsito e uma cultura de priorização de carros, que estimula motoristas a acreditarem ter mais direito sobre as ruas do que todas as outras pessoas.
O fato é que alta velocidade é a principal causa de morte no trânsito e um dos principais elementos a ser controlado para evitar essas mortes. Defender o desligamento de radares é defender que motoristas infratores, irresponsáveis e que descumprem a lei não sejam devidamente responsabilizados pelos seus atos. Felizmente, o requerimento do vereador foi reprovado pela Casa e apoiado apenas pelos seus pares bolsonaristas.
O que realmente precisamos é de uma cidade menos carrocrata, que olhe para todos os modais e priorize infraestrutura de proteção à vida em vez de velocidade; de políticas públicas baseadas em dados e evidências; de parlamentares que defendem um Recife para todas as pessoas e não a supremacia de uns sobre os outros. Até quando vamos perder pessoas para o trânsito?
Um radar eletrônico ativo pode ser a linha tênue que definirá se um trabalhador, uma mãe, um jovem estudante, seja ciclista ou pedestre, chegarão em casa com vida e em segurança ou se morrerão no asfalto abatidos por um carro em alta velocidade, como tragicamente aconteceu com Flávio e tantos outros.