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Falemos de memórias

Terça-feira, 1º de abril, não fica em casa, vai ao Sarau Poesia contra todas as ditaduras!

Nessa semana tivemos o 24 de março, data em que Argentina repudia o golpe empresarial militar, acontecido há 49 anos. 

Não guardo muitas lembranças de como foi esse dia. Quando aconteceu eu tinha 8 anos, mas lembro do clima tenso e ríspido que vivíamos desde 1974, quando faleceu Perón, e os militares foram tomando conta do país, até que em 1976, ao entrar o outono, os milicos irromperam com seus coturnos. Assim iniciava uma longa noite de terror que duraria 7 anos. 

Lembremos que foi em 1973 que os militares tomaram o poder no Chile e no Uruguai.

Já Brasil, tinha tido seu trágico dia no 1º de abril de 1964, e iria até 1985. Em poucos dias mais estaremos pisando os 61 anos do golpe empresarial militar. Será que conseguimos fazer dele um dia de luta e de memória, verdade e justiça?

Será que o STF está nos reservando o 1º de abril para anunciar a prisão de Bolsonaro? Isso sim que seria reparação histórica, isso sim que seria rir de gargalhar, de cantar aos berros, de rir e rir e rir. Porque apesar de você(s), amanhã há de ser outro dia.

Eu não estava aqui e não vivenciei o golpe no Brasil, mas isso não significa que não saiba nada dele. Para isso estão os livros, as conversas e Nossa Senhora das Memórias.

Uns meses atrás veio a Porto Alegre Amelinha Teles lançar Contos da Cela Três, memórias de uma presa política na ditadura (Ema livros). Vou pedir licença e recriar algumas de suas histórias, que são baseadas nos fatos “de um tempo de horrores que ainda não passou”. Ainda existe racismo, muita violência contra as mulheridades, os povos originários pedem por demarcação de suas próprias terras ancestrais e as dissidências sexuais continuam sendo castigadas. Mas, nós, ainda estamos aqui.

Amelinha, como a chamamos carinhosamente, mas que assina seus livros como Maria Amélia de Almeida Teles, durante a ditadura esteve incomunicável por seis meses, no ano de 1973. Na maior parte do tempo ela esteve na Cela Três do Antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops/SP), hoje, Memorial da Resistência. Ela foi sequestrada e levada para o Departamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo, o DOI-Codi/SP, “lugar dos horrores, da tortura e do extermínio de militantes políticos. Ali era ‘o inferno’ nas palavras dos próprios agentes policiais. Um lugar onde a imaginação fica empobrecida”. Amelinha conta que “a experiência de viver incomunicável numa cela é terrível. Não fosse a Lagartixa, não sei se teria suportado por tanto tempo”.

Uma mulher que se chamava Maria, gostava de escrever. Trabalhava num jornal e, um belo dia, defendeu que todas as crianças deveriam ter direito à escola pública, gratuita e de qualidade. Foi então que o governo não gostou nem um pouco da sua ousadia e a mandou prender. Nesses tempos foi considerada subversiva.

Não podia receber as visitas da sua filha, do seu filho, da sua advogada e não podia sentir o movimento do vento e da brisa contra seu rosto.

Na cela sempre aparecia uma lagartixa que corria pelas paredes em busca de alimento. Foi assim que a Lagartixa Linguaruda do Nascimento começou a morar na Cela Três, junto com Maria. Uma noite, quando saiu por baixo da porta a procura de uns bichinhos, acabou se distraindo, ela gostava de ouvir conversas cochichadas. Mas essa noite a delegacia estava muito agitada, turbulenta, cheia de horrores.

Uma das maneiras de ver o racismo na época era que, numa abordagem policial, se os jovens pretos não apresentavam a carteira de trabalho assinada pela pessoa empregadora, seriam levados para a prisão acusados de vadiagem. Não adiantava explicar aos policiais que não estavam desempregados porque queriam.

A Lei de Segurança Nacional de 29 de setembro de 1969, autoritária e repressiva, combatia a subversão e defendia a ordem ditatorial. Considerava crime qualquer manifestação antirracista, entendida, então, como ato de incitamento à guerra, à subversão e a divisão de população.

As pessoas negras que denunciavam publicamente o racismo foram exiladas. Clóvis Moura (1925-2003), sociólogo e escritor, nascido no estado do Piauí, mas considerado baiano, foi preso como subversivo porque confirmou a presença do racismo brasileiro. Ele destacava a rebeldia dos povos negros contra a opressão. Escrevia sobre a relação entre nosso passado histórico de escravização das populações negras e o racismo dos dias atuais.

O professor que acabara de ser preso continuava a denunciar o racismo contra as pessoas pretas e negras no Brasil quando dava aula de história. Isso era contrário ao que mandava fazer os ditadores. Ah, a Lagartixa entendeu o que era subversão! Era o ato de falar a verdade naqueles tempos sombrios.

Muitos dos presos eram estudantes universitários, outros, eram operários qualificados de fábrica que lutavam por melhores salários e condições mais seguras de trabalho. As mulheres eram ainda minoria nas universidades. Contudo, era mais raro ter estudantes negros. Negras, mais ainda.

Lélia Gonzalez (1933-1994), ativista do movimento negro e feminista, denunciou que em 1970, o censo demográfico tirou a expressão “raça” com o objetivo de invisibilizar as pessoas pretas.

O professor foi detido e torturado por ter considerado que devia dar aula sobre o Quilombo de Palmares, em plena ditadura!

O carcereiro o colocou na Cela Quatro.

Maria e o professor gostavam de escrever histórias e quando conseguiam transpor as regras da incomunicabilidade, passavam as suas histórias em tiras de papéis, que circulavam graças à Lagartixa.

Hoje, nesse papel, poderíamos ler um convite:

Terça-feira, 1º de abril, não fica em casa, vai ao Sarau Poesia contra todas as ditaduras! Será no bar Macunaíma, às 19 horas. República, 153 – Cidade Baixa.

Sem anistia!

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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