A gente escreve e gosta de ser lida, com certeza, mas também escreve para pensar, para desenvolver ideias. EscreVer transforma.
O processo de escrita do meu novo livro: A saliva que umedece – poemariam, um tratado sobre línguas, que será lançado na sexta-feira (11), mexeu demais comigo.
Tudo, ou todo (nunca vou aprender a diferença, entendam meus argentinismos e ouçam minha escrita com sotaque), começou em 2021 com uma chamada sobre literatura LGBT. E junto com essa chamada chegou a pergunta, se eu sou lésbika, toda minha literatura o será? Tudo o que eu escreva vai ser literatura lésbica, LGBTQIA+? Ou será necessário falar da minha existência lésbica, e para isso, eu deverei falar de amor, e para isso eu deverei de estar amando. Mas e se não estiver namorando? Deixarei eu de ser lésbica?
Com essas perguntas e outros devaneios começa meu livro de poemas. Como podem ver, ainda não encontrei as respostas. Será que para todo (ou tudo?) precisamos de respostas, ou às vezes é mais importante ouvir as perguntas?
Nasci em Buenos Aires, na Argentina, e vivo há 24 anos em Porto Alegre. Eu já não sou de lá e nunca serei de cá. Agora eu poderia dizer, PARE TUDO! Entendam, nasci em Argentina, mas não por isso me sinto argentina, vivo no Brasil, mas o que é ser (ou não ser) brasileira?
Tanto nas vidas, como no livro, trata-se de romper os binarismos e abrir brechas, habitar entre-lugares, não lugares, deslugares.
Então, quando Clô Barcellos, minha editora, na última reunião antes de enviar A saliva para a gráfica me disse que na ficha catalográfica, tinham inscrito o livro em literatura argentina, eu olhei sem entender: ‘Ué, tu não nasceste na Argentina?’
Então eu pergunto, o fato de eu ter nascido há 56 anos em um lugar cujo nome é República Argentina, isso faz de mim uma identidade ao longo dos tempos, dos anos? E o fato de eu ter saído de lá, onde entra?
Como dizem uns versos do poemariam
parti há mais de vinte anos
mas há mais de vinte eu
já estava partida
Vai ser o nascimento em um dado lugar o que vai marcar quem eu sou, que literatura eu farei para o resto da vida? E estar aqui, nesse outro Porto há 24 anos, não diz nada? Ter me tornado escritora no Brasil, escrever em brasileirês, faz de mim uma escritora brasileira? Definitivamente, eu sou muito anarkista para entender de nacionalidades e fronteiras.
Se tenho que dizer de onde eu sou, durante muitos anos me defini como latino-americana. Hoje, prefiro dizer de Abya Yala, o nome que tinha o dito continente antes de que aqui atracarem as caravelas europeias.

Ilustração de um não lugar, um deslugar
Eu sempre terei sotaque nas minhas línguas. Até hoje acontece todo dia que pessoas interrompam minha fala perguntando de onde sou (isso é um lembrete permanente de que você não é daqui), algumas delas também tentam me explicar – sim, ainda – como funciona Brasil (insistem, você não é daqui). Do lado de lá não é diferente. Cada vez viajo menos, mas quando isso acontece, têm pessoas que, sentindo meu sotaque, me explicam como é Argentina, sua gente e tal e qual. Ou pessoas de lá que eu encontro aqui, também me explicam coisas que eu já sei.
Isso (y otras cositas más) colabora para eu ir me tornando uma pessoa não binária. Nem argentina nem brasileira. Eu já questionava o binarismo há anos. Nem homem nem mulher, nem Cis nem Trans, nem grêmio nem inter, nem casada nem solteira, nem boca nem river. Se sou não binária, serei multinária?
A escritora alemã Yvonne Miller, radicada há uns anos no Brasil, utiliza o termo de literatura migrante. Achei bem interessante conhecer sua visão, recomendo ouvir o podcast, e, dar um belo passeio pelo Lume. Fiquei me perguntando se eu me reconheço mais no termo migrante ou no trânsito mesmo. Fui consultar com o Google e fiquei com a ideia de que migrar é sair de um ponto A, para chegar em um ponto B. Muitas vezes com muitas saudades de deixar o lugar de origem.
Pois então, eu não sinto saudades da partida.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Serviço
Lançamento do livro A saliva que umedece – poemariam, um tratado sobre línguas e sessão de autógrafos com a autora mariam pessah
Data: sexta-feira (11) | a partir das 18h45
Local: Bar Maria Maria | Fernando Machado, 464 – Centro