Ouça a Rádio BdF

Conversando com Marcia Tiburi

O feminiSmo é um movimento de libertação e o feminino a Marcia o descreve de forma perfeita: é a costela de Adão

“Para docilizar as pessoas marcadas como mulheres, foi inventado o ‘feminino’. O feminino é o termo usado para salvaguardar a negatividade que se deseja atribuir às mulheres no sistema patriarcal. Elogiado por poetas e filósofos, o feminino, nada mais é do que a demarcação de um regime estético-moral para as mulheres marcadas pela negatividade. Isso quer dizer que se elogia uma mulher quando ela é ‘feminina’, porque ela está de acordo com o que o patriarcado – que construiu o feminino para oprimir um corpo – espera dela. Assim, muitos elogiam o feminino, como se esse atributo fosse bom em si mesmo.” Marcia Tiburi, em Feminismo em comum para todas, todes e todos.

Sempre que termino de ler um livro, com o qual me identifico muito, tenho vontade de voltar ao início. De que não termine, que esse pensamento, essas histórias, essa filosofia, essas personagens, não me abandonem. Elas, que tantas portas abriram em mim.

E agora?

Acontece com vocês esse E agora, na hora de fechar o livro? Será fechar mesmo o verbo a utilizar? Nem fechar, nem findar, nem acabar.

Tem textos que ficam reverberando, nos deliciando como chocolate embaixo da língua.

Isso me aconteceu umas semanas atrás quando li Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve, um romance de Marcia Tiburi de 2023 e, agora, da mesma autora Feminismo em comum, para todas, todes e todos. Este é de 2018, mas eu li a edição revista e ampliada de 2023. Ambos os livros fazem parte do Clube de leituras que propõe Manuela D’Ávila, no Clube de Mulheres da Manu & E se fosse você.

Entrei esse ano, justamente, porque estava querendo unir literatura feminista e teoria.  Recomendo muito! Dá para entrar a qualquer momento e, até comprar com elas os livros.

Pensei em vir hoje – será motivada pelos ovinhos? – e dividir um pouco do chocolate com vocês.

Quem me conhece sabe que grafo a palavra feminiSmo com esse S bem grande para me diferenciar do adjetivo.

O feminiSmo é uma luta, um movimento social e político de libertação e o feminino a Marcia o descreve de forma perfeita. É a costela de Adão. Sabiam que esse é o nome, bem irônico, né,  de um dos primeiros grupos feminiStas de Porto Alegre, da década de 1970?

Eu sou uma feminiSta que não luta pela igualdade, mas por outra sociedade. Lutar só para obter os mesmos direitos que eles têm, parece como correr para sair segunda, pegar o ônibus quando já está viajando há horas na estrada, sentar numa poltrona suja.

Ou pior ainda, mesmos direitos que esses homens têm de matar, de estuprar?! E a maioria ficarem livres! Lembrando que na sexta-feira nada santa, teve SEIS feminicídios no Rio Grande do Sul!! (Não terminei de escrever a coluna e já subiram a DEZ!!!) Então, a ideia é aproveitar tantas desigualdades para sonhar outro mundo e que sirva para libertação de toda a humanidade. Sim, das mulheridades, mas também livre de racismo, de LGBTfobias, de desigualdades de classe e tantos outros privilégios. Isto seria o feminiSmo interseccional, porque não é por uma única causa que lutamos, mas por todos os grupos minorizados.

Como Marcia escreve: “outro projeto de sociedade e de democracia”.

Então, de sociedade com certeza!, mas de democracia? Marcia, vem cá, é possível seguir apostando na democracia, sabendo que eles não nos querem?

Sabemos que democracia, dizem, é quando o povo governa. E quem é o tal do povo numa sociedade patriarcal-capitalista-racista-LGBTfóbica-etarista-xenófoba?

A primeira vez, na história do Brasil, que houve uma presidentA em ação, levou um golpe. Desde sempre, a maioria das pessoas que governa, seja nas câmaras, nas assembleias, prefeituras, governos de estado; são homens. Até 2016, nem havia banheiro para as mulheridades no Senado!

Quando foi criada a democracia, as mulheres, as pessoas escravas e imigrantes não eram consideradas nesse sistema.

Faz sentido.

Faz sentido que a primeira vez que temos uma presidentA, os “representantes” da democracia façam um golpe. Vou quebrar o tabu e dizer que esse golpe foi misógino, e não foi só da direita. Seria muito bom e necessário falar da misoginia nas esquerdas.

Nas últimas eleições para a prefeitura, foi vergonhosa a campanha, ou a falta de apoio do PT a Maria do Rosário e Tamyres. Oh, coincidência! Novamente mulheres!

Continuando com o sonho de outro projeto de sociedade, cada vez que digo que sou contra a democracia, as pessoas em seguida pensam na ditadura militar. Mas não estávamos falando em sonhar outros mundos?

Sou uma pessoa que tenta pensar fora do binômio, a vida é bem mais profunda do que isto ou aquilo, então, se a democracia desde o berço não nos quer é óbvio que vamos ter que correr cinco vezes mais rápido, lutando contra tantas forças negativas, só para zerar elas.

“Uma construção conjunta capaz de pensar em processos sociais que miram o que podemos chamar de ‘comum’.”  Como escreve Marcia, o feminismo em comum seria nosso norte, um mundo comunitário onde primasse o pensamento coletivo e não o individual. Precisamos voltar a pensar coletivamente, olhar para as maiorias que, oh, acaso, são os grupos minorizados.

Dias atrás, ouvindo um programa de rádio, um homem entrevistando a outro, aparentemente, um senhor bem importante do qual esqueci seu nome. Este, o “importante”, dizia que a filosofia havia acabado depois de, e citava o nome de outro senhor também importante, de uns séculos atrás, cujo nome também esqueci. Insistia em que depois dele já estava tudo dito. Depois citava a Picasso, e dizia que depois dele a pintura tinha acabado, e citava a Piazzola e dizia que depois dele o tango tinha chegado ao seu fim. Bom, se já no antigo testamento está escrita a frase que não há nada de novo embaixo do sol e, nesses mais de 5.000 anos nasceram esses homens, não será que o “novo” estará em prestar atenção às pessoas de todos esses grupos minorizados? Que fácil, e absurdo, é decretar o fim. Quanto cinismo.

O fim de que, para quem?

Eu não guardo seus nomes porque, para quê? São todos estudiosos da mesma escola do patriarcado. Falam deles, para eles, entre eles. Isso que não é novo.

Que tédio deusas!

No mundo deles, agora, abril de 2025, ainda não entra uma mulher nem como exceção para confirmar a regra. Que regra? Eles são homens! Eles não têm. Quero rir do jogo de palavras e gargalhadar na cara dos omi importante que tanto tédio me causam. Sejam eles de esquerda ou de direita.

Mas o mais cômico e triste é que depois sou eu a separatista questionada porque escolho viver, estar, pensar com as mulheridades do mundo.

Tem textos que ficam reverberando porque nos faz sentir acompanhadas no deserto.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Veja mais