Dias antes do carnaval, dei carona para um querido e ele me perguntou sobre quando deixei de ser crente, interessado na mudança da minha personalidade. Eu disse a ele que nunca houve mudança, eu só passei a falar uma outra língua, participar de uma outra cultura, me conectar com o desconhecido sem intermédio do cristianismo. Eu disse a ele que nunca deixei de ser crente, mas que hoje acredito no amor, na revolução, no carnaval. Ele riu e disse “crente no carnaval”.
Pronto. Autodefinição atualizada. Eu sou mesmo crente no carnaval! E crente é compromisso. Quando dá outubro eu já começo a pensar em roupas, acessórios, o que vou melhorar, como vou inovar. Nesse verão eu fui para 12 bloquinhos de rua e usei 12 fantasias diferentes. Nada mais lindo e mágico para se acreditar do que na alegria, nas fantasias, na peladisse, nos beijos distribuídos a pessoas desconhecidas… essa lista é infinita. Mas para mim, nada melhor que a festa da carne nos bloquinhos de antes, durante e depois do feriado.
Para mim, o carnaval acaba quando o último dia do último bloquinho de rua termina. Pois bem, na capital federal de 2025, esse dia foi 16 de março e parece que foi ontem. E ainda assim, confesso que não aguentava mais usar fio dental, mas sinto saudade como se o próximo carnaval já pudesse acontecer no mês que vem.
Neste momento, é preciso louvar a magnitude do carnaval de Salvador que, no último dia 4 de março, foi reconhecido pelo Guinness Book como a cidade com o maior carnaval de trio elétrico do mundo. De acordo com o portal de notícias Terra em matéria de 3 de março, foram “aproximadamente cinco horas de duração e a maior quantidade de atos musicais realizados em trios elétricos no carnaval de rua – 229 no total”.
É preciso também aplaudir o carnaval carioca com toda a estrutura e história das escolas de samba, isso sem falar do lendário carnaval de Olinda. Assim, embora abandonar o quadrado no carnaval seja uma tentação, eu sou meio bairrista, sabe? E a minha cidade, também conhecida como capital do seu país, é só um bebê governado por fascistas que precisa de mim para falar bem dela, ocupar, resistir e crescer!
Imagina uma capital que saiu do litoral e aterrissou em dezenas de fazendas cercadas por muitos quilômetros de Cerrado. Quem veio para Brasília? Dulcina de Moraes veio. E veio com a missão de trazer o teatro para a nova capital. Quando perguntada onde queria construir seu teatro, dizem que ela fechou os olhos e colocou o dedo no mapa da cidade: Conic, centro da cidade, onde a poucos metros do marco zero da construção e da Rodoviária do Plano Piloto de Brasília, a Fundação Brasileira de Teatro (FBT) nasceu, cresceu e o legado de Dulcina agoniza há décadas, cada vez mais perto do fim.
Brasília é um bebê des-governado por fascistas. Disse e repito. Como é possível que o teatro da grande atriz Dulcina de Moraes já não exista para além de uma estrutura fechada e coberta de dívidas milionárias? Como é possível que o Teatro Nacional, uma estrutura pública também no centro da cidade, segundo matéria de janeiro do Brasil de Fato DF, tenha passado 10 anos com todas as suas três salas completamente fechadas? Como é possível que a Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec-DF) esteja, de acordo com a mesma matéria, operando com 789 funcionários a menos do que deveria?
A capital administrativa foi transferida para o coração do Brasil, mas o capital cultural não veio junto e os anos mostram que toda e qualquer tentativa de mudar esse cenário será duramente reprimida.
Eu, brasiliense, cria do quadrado, calanga do cerrado, goiana do quadradinho, poderia citar vários exemplos de eventos e equipamentos que um dia fizeram a diferença na movimentação cultural da cidade mas que, ao longo dos anos, foram desmontados, descapitalizados, boicotados e hoje sobrevivem na base da resistência.
Procure saber como era o Curso Internacional de Verão (Civebra) da Escola de Música de Brasília (EMB) no início dos anos 2000. Ou como era o Clube do Choro de Brasília na mesma época, como sua estrutura cresceu na década de 10 do século XX e o que aconteceu em seguida.
São muitos exemplos que poderia citar, esses são alguns dos que acontecem no centro que é para onde todo o dinheiro vai. Imagina nas periferias. Imagina que a própria Secec tem contribuído ativamente para o desmonte da cultura no DF – ver meu último texto desta coluna: a pior gestão da Secretaria de Cultura do DF? Mesmo assim, hoje vou me ater ao Carnaval do quadradinho que, na minha experiência, é um excelente exemplo de resistência na capital federal.
De acordo com matéria do Brasil de Fato DF, durante o pré-carnaval, manifestantes ocuparam a frente do Palácio do Buriti denunciando “abordagens truculentas contra os comerciantes durante as ações de fiscalização do DF Legal no pré-carnaval e exigiram a revisão da política de autorizações para ambulantes. Músicos também afirmaram que o GDF tem imposto barreiras ao funcionamento de fanfarras e de blocos que não foram contemplados pelo edital da Secretaria de Cultura: ‘O governo colocou uma faca no pescoço do carnaval independente’, afirmou Eudaldo Silva, da Muralha Antifascista”.
Não apenas o carnaval independente foi prejudicado. As estruturas de palco do chamado Setor Comercial Sul (SCS), estão diminuindo com o passar dos anos. Se em 2020 o extinto bloco das Sereias Tropicanas, do qual eu tive a honra e privilégio de ser produtora musical e cantora, se apresentou para um público de milhares de pessoas, este ano nenhuma das estruturas montadas tinha condições de receber mais do que algumas centenas de foliões.
Carnaval é resistência
Se, durante mais de uma década, a Praça dos Prazeres foi responsável por fechar as ruas da 201/202 Norte com um carnaval gratuito começando na quinta feira – além de ser o único lugar no centro onde se encontrava carnaval depois das 22h -, desde 2024 me sinto órfã desse abre alas. Durante a década de 10, me lembro de ficar triste com o fim à 1h sem imaginar que, em 2025, eu seria atacada por spray de pimenta antes das 21h em palco montado no Museu da República logo após o fim do Bloco das Montadas, o maior bloco LGBTQIAP+ do DF. Uma pessoa passou mal em frente ao palco cerca de 10 minutos antes do horário programado para o fim do bloco, 21h. Assim, a organização se despediu e pediu para a multidão se dispersar. No entanto, a polícia militar, presente em muitos bloquinhos em números quase iguais aos de foliões, resolveu se divertir distribuindo gratuitamente spray de pimenta pela multidão afora.
Quantas pessoas experimentaram essa sensação, absolutamente sem provocação, durante este carnaval? Postei nas minhas redes uma série de vídeos contendo violência gratuita por parte do Estado no carnaval de pelo menos 6 estados brasileiros. Até quando vamos permitir ser acuados dessa maneira?
O carnaval de Brasília é pura resistência desde que existe e foi essa mensagem, de antifascismo, que um dos blocos mais antigos da cidade, o Pacotão, criado em 1978: ‘Anistia Não’. Uma sátira ao momento político atual do país.
Por fim, neste início de ano astral, temporada do deus da guerra, Áries, no céu, eu invoco os poderes do calor, alegria, libido e de toda a rebeldia do carnaval para habitar conosco o ano inteiro. Que possamos, assim como no carnaval, nos entregar à ânsia do encontro e da alegria subversiva, aquele combustível perfeito para ocupar as ruas em uma grande revolução da classe trabalhadora pelo fim da escala 6×1 e pela implantação das 30h semanais de trabalho.
Que possamos sucumbir a energia revolucionária de aquário, aquela que rege o carnaval brasileiro e que agora encontrou Plutão para promover transformações sociais profundas e revoluções tecnológicas pelos próximos 20 anos.
Que possamos promover a revolução brasileira guiados pela energia do carnaval. Esse é meu desejo para esse pós-carnaval e “início” de 2025. Eu, crente no carnaval que descobri que sou, mal posso esperar para ver sua energia expandida ao longo do ano inteiro.
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* Naiara Lira é atriz, cantora e produtora cultural na capital.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.