Por Sarah Pitta
A Constituição de 1988 garante que o povo brasileiro participe das decisões sobre sua saúde. Mas, na prática, quem está realmente sendo ouvido quando o Estado decide se um novo medicamento, exame ou tratamento deve entrar para o Sistema Único de Saúde (SUS)?
A Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS), processo que analisa se uma tecnologia é eficaz e viável para o sistema público, ainda não dá conta de incluir as vozes de quem mais precisa do serviço público.
A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), responsável por coordenar esse processo, baseia suas decisões em evidências científicas, análises de custo e impacto social. Contudo, a participação da população nesses debates ainda é extremamente limitada.
Mesmo nas consultas públicas, o principal instrumento de escuta da sociedade, quem fala são, em sua maioria, pessoas brancas, com ensino superior e moradoras da região Sudeste. Ou seja, justamente quem mais precisa do SUS continua fora da conversa.
SUS: iniciativas decididas por poucos para muitos
Essa exclusão é mais do que uma falha democrática, é também uma barreira à eficácia das políticas públicas. Tecnologias em saúde não são neutras: elas têm efeitos diferentes dependendo do território, do contexto social e das realidades locais. Quando decisões são tomadas sem ouvir a população usuária do SUS, corre-se o risco de investir em soluções que não resolvem os problemas reais.
A falta de representatividade nos processos da Conitec revela um modelo de participação social que ainda é pouco efetivo. Embora exista o mecanismo das consultas públicas, elas seguem inacessíveis para grande parte da população, seja pela linguagem técnica utilizada ou pela estrutura digital exigida.
A criação de uma Subcomissão para Doenças Raras em 2024 sinaliza alguma tentativa de abertura. Mas ainda é muito pouco. Um único representante da “sociedade civil” não representa a pluralidade de vivências e necessidades da população brasileira. Continuamos com uma escuta limitada, pouco inclusiva e distante da base.
Além disso, participar dos processos da ATS exige conexão com a internet, familiaridade com jargões técnicos e disponibilidade para preencher formulários longos e complexos. Esse cenário escancara um paradoxo: o sistema convida a sociedade para participar, mas impõe condições que só uma minoria consegue cumprir. Assim, os saberes populares, as experiências cotidianas e os contextos periféricos seguem à margem das decisões.
Quem fala por nós: fortalecer a participação
Tecnologias em saúde devem ser ferramentas de equidade. Para isso, precisamos democratizar também a forma como elas são debatidas. Isso passa por uma comunicação pública efetiva, que fale com a sociedade em uma linguagem simples, que promova a educação em saúde e que fortaleça o vínculo entre Estado e população.
A Conitec até tem buscado simplificar a comunicação com os chamados “relatórios para a sociedade”, mas eles ainda não são conhecidos pela maioria das pessoas. Quantos trabalhadores que enfrentam jornadas exaustivas, em escala 6×1, têm tempo e condições para acessar e compreender esses documentos?
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Essa ausência de participação pode gerar consequências graves, como a judicialização das políticas públicas de saúde. Quando as pessoas não se sentem ouvidas, recorrem aos tribunais, um caminho que nem sempre garante equidade e pode comprometer o planejamento do SUS. Criar canais de diálogo mais acessíveis e transparentes é também uma forma de fortalecer o sistema e prevenir conflitos futuros.
Fortalecer a alfabetização em saúde e incluir diferentes saberes nos processos decisórios são caminhos urgentes. Quando grupos de pacientes, familiares e movimentos sociais se organizam para pressionar por mudanças, mostram que o debate é possível, desde que haja espaço real para ela acontecer.
A luta por um SUS mais justo passa pela escuta ativa e pela construção de políticas públicas que reflitam as reais necessidades da população. A saúde é um direito de todos e o diálogo efetivo é a chave para garanti-lo.
Precisamos de um sistema onde todas as vozes sejam ouvidas, especialmente aquelas que, até hoje, continuam sendo silenciadas.
Sarah Pitta é farmacêutica e doutoranda do Instituto de Medicina Social
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Este é um artigo de opinião, a visão da autora não expressa necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato