Por Bruno Lazzarotti e Clarice Miranda
Os discursos machistas estão por toda parte – das falas de líderes de Estado às conversas cotidianas entre amigos. Ideias abertamente misóginas são repetidas e naturalizadas sem grandes questionamentos.
Muitas vezes, o machismo se esconde nos detalhes sutis, camuflado como algo natural
Mas o mais preocupante é aquilo que passa despercebido: preceitos tão enraizados que parecem neutros. Na verdade, foram construídos sobre uma lógica que exclui e invisibiliza as mulheres. Muitas vezes, o machismo não se revela em declarações explícitas, mas se esconde nos detalhes sutis do dia a dia, camuflado como algo natural.
Isso ocorre porque, historicamente, a ciência tem adotado o homem como padrão universal. Como aponta Caroline Criado Perez, em Mulheres Invisíveis, as pesquisas e dados estatísticos foram desenvolvidos sem levar em conta as especificidades femininas, o que perpetua as desigualdades e reforça a ideia de que as mulheres seriam uma exceção, tanto em determinados ambientes, quanto no consumo de certos produtos.
O ar-condicionado
Um exemplo claro disso é o ar-condicionado nos ambientes de trabalho. Quantas vezes mulheres são vistas como exageradas ou sensíveis ao reclamarem das temperaturas congelantes dos escritórios?
O que poucos sabem é que a tal “temperatura ideal” foi definida com base em um estudo dos anos 1960, quando a presença feminina no mercado de trabalho ainda era mínima. Ou seja, os padrões de conforto térmico foram estabelecidos considerando quase exclusivamente o metabolismo masculino, deixando de lado as necessidades das mulheres.
Como aponta uma pesquisa publicada na revista Nature Climate Change, o problema não é a suposta sensibilidade feminina, mas sim um ambiente que nunca foi pensado para elas.
Os carros
Outro exemplo claro disso são os automóveis. Antes de chegarem às ruas, eles passam por uma série de testes para avaliar o impacto de colisões e a eficácia dos airbags. O problema? Esses testes são feitos, em sua maioria, com base em um único perfil de motorista: o masculino.
A posição ao dirigir é um fator crucial para a segurança, e aqui surge uma grande diferença. Mulheres, por terem em média menor estatura e braços mais curtos, costumam sentar-se mais próximas ao volante. A distância dos pedais também impõe desafios, já que o ângulo dos joelhos e do quadril pode torná-las mais vulneráveis em colisões frontais.
No entanto, esses detalhes raramente são levados em conta nos testes de segurança veicular, resultando em um risco maior para elas simplesmente porque o carro não foi pensado para seu corpo.
Músicos e instrumentos
Mulheres, por terem em média mãos menores, enfrentam desafios que vão desde a execução de determinadas peças até o risco aumentado de lesões. Estudos indicam que um número significativo de pianistas mulheres sofre com lesões por esforço repetitivo (LER), muitas vezes causadas pelo esforço extra necessário para alcançar certas teclas.
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Um levantamento de 1984 revelou que pianistas homens bem-sucedidos tinham maior envergadura nas mãos, o que facilitava a performance e evitava problemas técnicos. Ainda assim, os instrumentos seguem sendo projetados com base em padrões masculinos, excluindo as necessidades de grande parte das pianistas.
Iniciativas como o teclado 7/8 DS, com teclas menores, mostram que adaptar os instrumentos pode tornar a música mais acessível e inclusiva, sem comprometer a qualidade sonora.
Smartphones
A busca por telas de smartphones cada vez maiores pode ser um avanço tecnológico para alguns, mas, para muitas mulheres, representa um desafio ergonômico. Com mãos, em média, menores do que as dos homens, o uso desses aparelhos com apenas uma mão se torna desconfortável.
O mundo, muitas vezes, é construído em torno de um padrão implícito, onde o homem é a medida
Curiosamente, as mulheres são maioria entre as consumidoras de iPhones, mas, ainda assim, fabricantes de celulares não têm priorizado ajustes de tamanho para melhorar a usabilidade. Pesquisas mostram que esse descompasso no design contribui para desconfortos e até para um aumento no risco de distúrbios musculoesqueléticos, reforçando um padrão de mercado que ainda não considera plenamente as diferenças físicas entre seus usuários.
O mundo pelo qual vale a pena lutar é aquele pensado para todo o mundo
Diante disso, é perceptível que o mundo, muitas vezes, é construído em torno de um padrão implícito, onde o homem é a medida. Assim, essa realidade, tão profundamente enraizada, ao ignorar as particularidades femininas, perpetua um ciclo de desigualdade que não se limita a discursos.
Sob essa ótica, para romper com esse ciclo, é essencial repensar e reconfigurar, colocando a diversidade de experiências humanas no centro das decisões e desnaturalizando padrões aparentemente universais, mas de fato, injustos e excludentes. Este mundo cabe a nós construir e disputar.
Bruno Lazzarotti é professor e pesquisador da Fundação João Pinheiro, coordenador do Observatório das Desigualdades e doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Clarice Miranda é discente do curso de Administração Pública da Fundação João Pinheiro, integrante do Observatório das Desigualdades e servidora da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais.
O Observatório das Desigualdades
Parceria entre a Fundação João Pinheiro (FJP) e o Conselho Regional de Economia de Minas Gerais (Corecon-MG), o Observatório das Desigualdades, criado em agosto de 2018, é um projeto de extensão do curso de Administração Pública da FJP que busca contribuir com o debate informado sobre as diferentes faces da desigualdade social, os mecanismos que as produzem e reproduzem e as formas de enfrentá-la, difundindo e tornando mais acessível o conhecimento sobre o tema.
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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal